Opinião

Jornada matemática deserto adentro

A maioria das pessoas associa a matemática a grandezas, fórmulas e gráficos

De onde vem a matemática? Seria ela compreensível apenas à humanidade? Certamente certos animais contam (e outros aparentemente não...), mas é consenso que alguns têm o que se chama de senso numérico: reconhecem um, dois ou mesmo três filhotes. De fato, o princípio da contagem é admitido ser uma atividade humana, mesmo sem a necessidade de um aprendizado formal, como a ida a uma escola, digamos.

Nossos ancestrais conseguiam manter registros dos seus rebanhos, ou dos seus exércitos, fazendo marcas na madeira, argila ou em ossos, ou ainda arrumando pedras (seixos ou cálculos) em pilhas. Podemos rastrear essa origem verificando que as palavras “talha” e “cálculo” vem do latim, talea, que significa corte, e calculus, que significa seixo. De acordo com alguns estudiosos, a concepção de número surgiu antes mesmo do aprendizado da linguagem formal.

De fato, existem seres incríveis com grande capacidade matemática, embora desprezados pela sua origem e tamanho. Podemos citar, por exemplo, Ahmed. Ele vive no deserto tunisiano, no extremo norte do Saara. Ele não teve nenhuma educação formal e tudo o que sabe aprendeu por experiência.

Todo dia Ahmed deixa sua casa no deserto e viaja longas distâncias à procura de alimento. Em sua caça, ele primeiro segue numa direção, depois outra... E continua nesta ate ser bem sucedido, momento no qual faz algo realmente notável: em vez de seguir suas pegadas na areia – que poderiam ser apagadas pelo vento, ele se vira exatamente na direção da sua casa e parte em linha reta, sem se deter até que a alcance, aparentemente sabendo de antemão que distância andar, com uma margem de erro de apenas alguns passos.

Surpreendentemente, Ahmed é apenas uma formiga. Mais especificamente da espécie Cataglyphis fortis.

Várias formigas guiam-se por odores e rastros químicos, delas ou de outras da colônia – o que NÃO é o caso da formiga tunisiana. A explicação, observada primeiramente pelos pesquisadores Rüdiger Wehner (n. 1940, neurocientista alemão) & Mandyam Veerambudi Srinivasan (n. 1948, engenheiro elétrico indiano) no J. Comp. Physiol142, 1981, págs. 315-338, baseia-se na técnica chamada cálculo de posição. Desenvolvida por marinheiros em tempos remotos, consiste em registrar a direção, velocidade e tempo decorrido, sendo possível calcular assim a distância exata percorrida. Tal história é também contada no delicioso livro “O Instinto Matemático – Por que Você é um Gênio da Matemática [Assim Como Lagostas, Pássaros, Gatos e Cachorros]” de Keith James Devlin (n. 1947), Ed. Record, publicado em 2009.

Estudos recentes mostraram que tais formigas medem as distâncias contando passos, e tendo a noção média de cada passo, podem calcular a distância percorrida multiplicando tal comprimento pelo número de passos – um verdadeiro e sofisticado sistema de navegação no deserto. Isto pode ser considerado um verdadeiro milagre da natureza, pois tais insignificantes animais, mesmo sob escaldante calor, conseguem sobreviver, aventurando-se em busca de alimento.

É claro que tais estudos NÃO sugerem que tal inseto execute multiplicações como um ser humano faria. A formiga simplesmente faz algo que lhe é natural, seguindo seus instintos, que resultam de centenas de milhares de anos de evolução. Em outras palavras, ao longo de milhares de anos, o cérebro desta particular espécie foi equipado para realizar instintivamente operações que, expressas em matemática formal, parecem complicadas. Isto é diferente do senso numérico, que permite olhar uma coleção e dizer instantaneamente: são três filhotes, duas árvores, três pedras ou quatro cavalos. O senso numérico permite apenas isso: dois, três... poucos.

Portanto, não se pode confundir o senso numérico que aparece em alguns animais, sejam pássaros, insetos ou macacos, com a contagem, que é um atributo puramente humano e é uma das bases de todo o desenvolvimento matemático. A contagem consiste basicamente em enumerar objetos, um a um. Assim, pode-se contar conjuntos de coisas muito maiores que os percebidos somente pelo senso numérico.

A maioria das pessoas associa a matemática a grandezas, fórmulas e gráficos, que configuram apenas a parte simbólica dessa incrível componente curricular. Matemática, de acordo com Devlin, refere-se a muito mais do que isso: trata de padrões, repetições que se observam e se verificam na natureza. Os números estão entre as mais elegantes criações do gênio humano, mas não são a única via para resolver determinados problemas. Devlin defende que certas pessoas também têm habilidades matemáticas que antecedem até mesmo o aprendizado da linguagem. Ahmed, um insignificante matemático, é prova disto...