Cassiano Antico

É a maldade nossa matéria-prima (é o amor que pode nos livrar dela)

coração
Imagem: Pixabay/Creative Commons

Quem poderia imaginar que a eternidade de um riso de criança numa tarde chuvosa e enlutada poderia aliviar, por um instante, toda a dor humana? O que dizer a um pai que perdeu o único filho para o coronavirus? Qual palavra? Chegamos a 200 mil vidas ceifadas pela covid19,  200 mil pessoas.

Constato, com profunda tristeza, que não somos apenas do tecido de que são feitos os nossos sonhos, mas também da mais antiga herança da indiferença e da maldade. Se o jornal impresso ainda tivesse função, a tragédia de ontem estaria hoje embrulhando o peixe na feira ao som de risos e de piadas de mau gosto. Não precisa de nenhuma lupa para ver isso.

E tem mais: o que faz mover o nosso mundo decadente é a especulação. A mentira! Dá uma olhada na bolsa de valores: uns ganham para milhares perderem tudo. Todos os grandes negócios, empresas, estão lá. Poucos riem, milhares choram.

Dizem que todas as fortunas do mundo têm assassinatos, falcatruas, trabalho escravo, chantagem, especulação, conchavos sórdidos... Acredito piamente! Toda filosofia é vã. Ninguém chega a milhões, bilhões  nessa vida trabalhando honestamente. Foi assim com os Rockefellers, com os Ford, com a Coca-Cola (que tem um longo histórico de trabalho escravo), com as grandes empreiteiras...

Que natureza humana é essa? Você pode me dizer que são só negócios. Que somos apenas números. Mas seremos só negócios? Números? Talvez você tenha razão. Atualmente somos negócios funerários em alta. Vamos virar até aplicação na bolsa. Números!

Olha pros bancos: cada vez mais ricos em plena recessão planetária. Olha pro Congresso Nacional e pros politicos: cada vez mais ricos e gordos e ladrões e com bancadas de todo tipo - até bancada da bala eles criaram. Da bala! Olha pro modelo de vencedor: geralmente alguém sem escrúpulos, porque no topo do pódio só tem lugar para um; um canalha, o pior canalha de todos, capaz de vender a própria mãe, a esposa, filhos - a alma ele dá de graça.

Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira? - perguntaria Saramago.

Não tenho nenhuma ilusão, olhando para o passado e me apoiando nos livros, de que a pandemia não nos tornará melhores, mas infelizmente piores.

Eu também já fui a porcaria do number one. E me senti um completo otário. Um bosta number one!

Há sempre alguém mais prisioneiro que a gente tentando nos enjaular, repara. Estive entre os melhores classificados na Universidade, meu nome estava no jornal; passei também no exame da Universidade da Carolina do Norte (com direito a bolsa integral); trabalhei nos melhores escritórios de advocacia e de publicidade; já venci inúmeras competições de natação, de karatê; carrego nas paredes da memória até os "pódios" de antigas competições de como cheirar a carreira mais longa e mortal de cocaína, de como se matar sem morrer, de andar na roda traseira da moto em alta velocidade utilizando somente a mão do acelerador; trabalhei com uma cambada de canalhas.

Venci o vício, me libertei dos canalhas. O amor me salvou dessa palhaçada toda. Me sinto com 500 anos ou mais. Sou o pai da Valentina e da Isadora -  elas são os anjos da guarda da minha vida. 

Quanto mais leio sobre a humanidade e o mundo, quanto mais existo, menos sei. E cada vez que vejo um pássaro voando: sinto uma enorme gratidão por estar vivo. A gente pode ser um câncer para este mundo, mas tenho esperança nas crianças.

E também sei que o homem é capaz de grandes ações. A história está repleta de exemplos. E muitos deles viveram no anonimato. Se você for capaz de viver por algo ou alguém, além do teu umbigo, tua morte não terá sido em vão. 

Você é capaz de viver por um mundo melhor? Pois bem, estou farto de pessoas que morrem por uma ideia. Não acredito em heroísmo bélico, em dedo na cara - nem Camus acreditava e dá a letra no livro "A Peste".

A morte é o caminho mais fácil pro covarde. É exatamente isso que os donos do mundo querem: acabar com tudo que é digno e que nos resta de humanidade. O que me interessa é que se viva, que se viva em abundância e que a gente ame. Isto para mim significa ser um verdadeiro rebelde.

O verdadeiro rebelde não é o que odeia, mas o que ama, não é o que soca, mas o que aparta. É o que segura a batata quente nas mãos, que mete a cara na sopa tórrida, que se entrega, que ama até aquilo que não merece. Porque só o amor salva!

Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras: como aquele pássaro sumindo no céu, o sorriso de minha filha aliviando a dor incurável do meu amigo, você dormindo do meu lado.