Cassiano Antico

Sobre a falta que me faz a voz calma e arrastada do meu avô

 
O fato de que todos no mundo sonham todas as noites une toda a humanidade
-- Jack Kerouac

Hoje é o segundo dia após o ano de 2020. O ano do coronavirus, o ano do distanciamento social, o ano que estive mais próximo de minhas filhas, o ano de muita tristeza, o ano de valas abertas, de mães em pranto, o ano que regamos nossas plantas, o ano que encaramos nossa sombra.

Porque o que me preocupa não são apenas os ditadores que vejo vagando como donos do nosso mundo, mas o pequeno ditador que habita cada um de nós. E ele mora no íntimo de uma Madre Teresa e de um Fernandinho Beira-Mar. O que muda é o que fazemos com isso. Uns trazem luz, outros trevas. E, Infelizmente, não há dúvida de que o homem não é tão bom quanto imagina ou gostaria de ser. 

Todo mundo tem seu espectro, seu lado oculto da lua, e quanto mais escondido está da vida do indivíduo, mais perigoso se tornará. De qualquer forma, é um dos nossos piores obstáculos, já que frustra as nossas ações bem intencionadas, como defendeu Carl Jung. E não é nenhuma novidade.

O conceito de sombra ou o lado obscuro constitui essa dualidade comum, que inspirou Robert Louis Stevenson a criar o seu clássico “Dr. Jeckyll e Hyde”, muito antes de Jung desenvolver a sua teoria sobre o arquétipo da sombra, do fantasma. Portanto, não podemos esquecer que o nosso crescimento pessoal dependerá sempre da nossa capacidade de iluminar nossas trevas.

O pequeno hitler interior não irá embora por conta própria, ele entrará em 2021 dentro de todos nós. E aqui não me furtarei a inúmeros clichês.

A vida é um monstruoso clichê. Aliás, existe algo no mundo que não seja lugar-comum como busca por sentido, encontrar a felicidade, o desejo de ser amado, ter uma casinha no campo, ou ser um gênio? Existe até aquele incompreensível clichê  de que nunca devemos voltar aos lugares onde fomos felizes ou alegres ou tratados com admiração — então devemos voltar a quais? Àqueles onde fomos somente infelizes e machucados e humilhados e porrados? Para dar um ar cool ou cult a um texto ou a uma vida não vivida ou a qualquer coisa assim?

Uma pessoa não é iluminada por imaginar figuras de luz, mas por estar ciente da escuridão - alguém disse.

Meu vô está morto.  No seu aniversário de 88 anos, dei de presente pra ele o livro "Memória de Minhas Putas Tristes". Parece até livro de putaria, né? Mas é o contrário. É uma história de amor, outro clichê.

Amor: o maior de todos os clichês e talvez o único que vale a pena. Eu tinha acabado de ler e fiquei comovido com o livro, com a história do protagonista, um escritor e crítico musical de 90 anos.

E o enfoque principal é a velhice e tudo o que vem com ela: a ironia sutil das pessoas ao redor, a fragilidade, o fim que não chega com hora marcada, a sensilbilidade aguçada, a lentidão dos passos, o pigarro presente no peito, os ossos fracos, e tudo isso sendo narrado por um mestre. 

Meu vô, em seguida, teve que passar por 40 sessões de quimioterapia e me disse que levava o livro para ler porque as sessões demoravam, assim ele saia do mundo e esquecia, por algum tempo, a porrada da morte lhe nocauteando o pâncreas. E nem carece dizer que foi um período bem barra pro vô, né?  Mas ele enfrentou. Não se acovardou! E me disse: "Que história bonita, filho. O ser humano não é só animal. Mas precisa coragem para sentir. Sabe filho, na minha infância, minha avó me levava para ver o céu estrelado. E ela me mostrava as Três Marias, as constelações, o infinito. Todas as estrelas. Aquilo, estranhamente, me aliviava o coração, filho. E me mostrava o quanto precisamos aprender". Eu o abracei na hora.

O vô viveu mais 4 anos. Só foi morrer aos 92 anos. Poxa! Curtimos muito juntos. 

Sinto tanta falta do teu tom de voz calmo, grave, arrastado, vô! Sinto falta de você me ligando para saber como estou me sentindo; querendo vir a São Paulo pra passar uns dias comigo. Você não conheceu minhas filhas, vô. Nem minha companheira. Tenho duas filhas, vô.

Valentina acabou de me pedir para eu mergulhar com ela e cantou uma canção em inglês na borda da piscina. Eu prestei atenção. Você me dizia para prestar atenção porque a vida está nos detalhes. Estou te entendendo só agora, vô. Isadora está nos meus ombros; como eu ficava nos teus.

Você nem poderia imaginar que ia ter um tal coronavirus, né? Tem noites que eu acho que o telefone vai tocar e que vai ser você. E você vai me dizer que vai ficar tudo bem. Sinto falta da tua esperança viva; até quando o furacão me arrastou para longe da civilização, e eu estava bastante ferido, jogado, triste, e você deu o tempo que eu precisava para poder andar de novo.

O teu jeito de falar comigo me acalmava. Você desarmava bombas, as bombas mesquinhas do nosso mundo, vô. Eu tenho um irmão assim. Um grande Brother.

Numa época em que todo mundo quer meter fogo em tudo, isso é raro, muito raro, vô. Sinto falta de vê-lo dançar com a vó. Tua dança parecia uma congada; todo mundo ria. E você se divertia.

Nosso lado sombrio ficava pequeno na tua presença. Espero te encontrar outra vez, vô. Sei lá onde... Nem que seja lá pro lado das nuvens, numa chuva de verão, num clarão de raio. Ver seu sorriso sincero. Te agradecer por tudo.