Cassiano Antico

Vou tecendo sonhos à espera de que os deuses ergam hospitais

Castelo de areia
Foto: Gerardo Ramones/Pexels/Creative Commons

 
Eu quero uma casa no campo / Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé / Onde eu possa plantar meus amigos / Meus discos e livros / E nada mais
-- Casa no Campo, na voz da Elis Regina

Estou presente nos meus olhos, no meu corpo, como há muito não estava. Vejo o mar pela fresta da janela. Escuto o barulho das árvores chacoalhando suas folhas. Lá fora minhas filhas brincam com os primos e o som que eles produzem é o mais belo dos cânticos. Escuto com atenção.

Atrás de suas cabeças miúdas há um horizonte sem fim e brilha o sol  -  laranja madura boiando no céu. Cada um de nós é único, cada parte de nós é única, um pé é maior que o outro, uma orelha é maior que a outra, todo nariz é disforme.

Não quero harmonizar o que não pode ser e nem o meu rosto. Eu o quero torto. Nossa imperfeição já é perfeita!

O nó na garganta parece afrouxado. Aguardei, em silêncio, o dia acordar. Ligo o celular, muitas mensagens: felicitações, emojis, presépios, viva 2021, saúde, dinheiro, corações de todas as cores, notícias tristes, mortes, desespero, luto, meu peito dói, minha boca seca, tenho sede... Sede de vida!

Na cama, sinto o perfume dos cabelos de minha mulher, tenho vontade de abraçá-la. Abraço-a da forma mais delicada possível. 

E caminho sozinho... 

De tanto ler os gregos, lembro-me de Diógenes: "Não sou nem ateniense nem grego, mas sim um cidadão do mundo". Os Titãs até gravaram a canção "Lugar Nenhum". Porque nenhuma pátria nos pariu. Nenhuma! Foi uma mãe. 

Diógenes foi o mais folclórico dos filósofos. São inúmeras as histórias que se contavam sobre ele já na Antiguidade.

O filósofo, considerado pai do cinismo, não tinha nada de cínico ou de hipócrita. Foi um dos pensadores mais profundos e corajosos da nossa raça. Consigo vê-lo com uma lanterna acesa em plena luz do dia procurando por gente de verdade, por homens verdadeiros, por almas nobres.

E percebo Diógenes se decepcionando dia após dia. Mas Diógenes é fera, consome a podridão do mundo de peito aberto, encara toda a solidão da noite, bebe toda a solidão das almas atormentadas. E dorme abraçado ao seu cão. 

Gosto da história de Diógenes com Alexandre, o Grande, que, ao encontrá-lo, perguntou o que poderia fazer por ele. Acontece que devido à posição em que se encontrava, Alexandre fazia-lhe sombra. Diógenes, então, olhando para Alexandre, disse: "Não me tires o que não me podes dar!" Que significa:  "Deixa-me ao meu sol, saia da minha frente!" Essa resposta impressionou Alexandre, que, na volta, ouvindo seus oficiais zombarem de Diógenes, disse: "Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes!" 

Respiro fundo. Reparo nas crianças... o bebê pronuncia a primeira palavra... E ri. Seu riso acaricia o meu coração.

São tantas as coisas que me fazem sentir que todos os minutos cabem dentro de um só. Que da vida que passa, a gente deixa escapar as minúcias. E são elas, pequenas, bobas, aparentemente insignificantes que nos permitem contemplar, como que por uma fresta, a beleza sempre presente.  

Engana-se quem pensa que é da tormenta de palavras e das eloquências que nascem as grandes ideias. Não, não é. É do silêncio. É da pausa entre uma fala e outra, que a gente mergulha, faz elos e traz para superfície o que estava lá dentro de nós, mas num outro formato, num formato inferior, numa disposição limitada - porque palavras não têm sentimentos. Palavras não têm coração. Palavras não sangram. Palavras não morrem.

Que os deuses construam hospitais e palácios para as almas sofredoras. Enquanto não o fazem, construirei com as areias do mar e com a ajuda de mãos inocentes e pequenas um palácio de sonhos para todos nós.