A reportagem na tela do celular falava sobre o suicídio infantil e eu caminhava com um só pé de chinelo e um nó na garganta. Em algum momento recordei-me da definição de Anton Tchekhov de que o escritor não é um confeiteiro, um negociante de cosméticos, um vendedor, alguém que entretém; o escritor é um homem constrangido pela realização do seu dever e a sua consciência. No labirinto destas maltraçadas vocês compreenderão minha tormenta.
Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. Eles pensaram com alguma razão que não há punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança. Sísifo é a representação moderna do nosso cotidiano.
O mito de Sísifo também é um ensaio filosófico de Albert Camus. O homem vive sua existência buscando algum sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, inconsequente. A solução em não encontrar coerência não deveria ser o suicídio.
Sísifo luta pela vida. Sísifo é o herói absurdo. Tanto por causa de suas paixões como por sua angústia.
E a reportagem que me causava vergonha e tristeza não era especificamente sobre o aumento dos casos de Covid-19 em Tóquio, mas o fato de o número de suicídio de japoneses nos últimos meses quase se equiparar ao número de ceifados pelo novo coronavírus.
E o soco na boca do estômago veio no fim da reportagem: um número gigantesco de crianças japonesas se suicidando. Crianças se matando!
O mais importante parece ser a olimpíada, a festa, as corporações, os lucros, os patrocinadores, o palco, o dinheiro, a aparência, a destruição, os supersalários, o grande circo.
Que mundo criamos e que estamos detonando? Que mundo é este em que crianças cometem suicídio? Só posso concluir que elas não querem fazer parte dele.
Sísifo demonstra desprezo pela morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo ser se empenha lutar pela sobrevivência. E os que abandonam a bola antes de começar o jogo? E os que se negam a participar do jogo sujo?
Um pouco antes de toda a reflexão, minha filha havia me pedido um pedaço de bolo. Lembrei-me que comi o bolo inteiro na noite anterior. Parei meus afazeres e saí para comprar um bolo de cenoura. Fui de chinelos, camiseta, bermudas, um trocado no bolso e uma profunda tristeza no coração. Nó na garganta! Foi quando comecei esta crônica para a coluna Papo de Pai.
Um temporal monstuoso cai no exato momento que piso na calçada. Caminho sob raios e trovões. Na volta, tentando proteger o bolo, percebo que a rua e a calçada estão submersas; um mar nas ruas, a força da água me leva um pé de chinelo. Penso em todo o esforço do corpo de Sísifo ao erguer a pedra gigante, empurrá-la morro acima; seu rosto vincado, sua bochecha suada colada contra a pedra, seus braços enfraquecidos. Todo esforço para nada, zero.
Viro a esquina: sonho de olhos abertos enquanto rezo pelas crianças do Japão e do Brasil e do mundo todo. No meu sonho não será mais necessário que a cidade seja destruída, pois quando o homem conhecer a si mesmo, daqui um bilhão de anos - se o mundo não acabar e se as crianças não se matarem todas -, um homem entenderá o outro homem.
Aceitará o estrangeiro, o índio, o amarelo, o preto, o branco, o verde, o musculoso, o fracote, o faquir, o colorido, o etecetera e tal, o sem nome, o ninguém, a si mesmo. Passará a ter um novo conceito de humanidade. Talvez nós bipedes nos tornemos, enfim, humanos. Daqui a um bilhão de anos.
A esperança é criança, meus irmãos. E ela está se matando.