Cassiano Antico

Uma borboleta e uma mensagem (e você escapa da areia movediça)

Borboleta
Foto: Tinthia Clemant/Pexels/Creative Commons

 

Isso é o que corresponde ao verdadeiro amor: deixar uma pessoa ser o que ela realmente é

-- Jim Morrison

O homem segue sua rota, nada o inquieta. Por que inquietar-se? No seu íntimo sabe que o caminho é solitário.

Enxerga a luz que São Francisco deixou em nosso mundo, a busca por redenção de Kerouac, a aflição de Gógol, a epilepsia de Dostoiévski diante da raça humana, o tormento de Hemingway segurando a espingarda no momento fatal.

Continua caminhando e sente, porém, algo estranho, como se o peso de seus pés crescesse a cada novo passo.

De repente ele afunda. É uma areia movediça. Se carrega algum peso, lança-o para longe, como um navio fraturado. Se está na natureza, enterra-se lentamente para contemplar as árvores, os pássaros, o céu. Para ter uma última visão minimamente decente do nosso mundo.

Se estiver no esgoto, como Jean Valjean carregando um moribundo nas costas (Os Miseráveis), na sujeira, no podre oculto da humanidade, a morte -  além de agonizante -, será sem dignidade.

Mas a pior morte acontece quando o homem vai se acovardando. E esta morte será a mais miserável de todas porque ela acontece em vida. Valjean superou o esgoto.

Por que escrevo tudo isso? Porque estou na areia movediça.  Superei o uso compulsivo de drogas, só Deus sabe o que eu já sofri! E caí em outra areia movediça: o medo.

Vocês vão entender.

Enquanto estou de mãos dadas com minha caçula de 4 anos descendo a rua para comprar o nosso almoço, minha filha de 7 está passando por uma cirurgia. Especialistas dizem que é algo simples, uma hérnia no umbigo. Porém, eles a fizeram dormir com anestesia geral. Abriram a barriga da minha filha. Se me parassem agora na rua e me perguntassem qualquer coisa, o meu nome, o número do meu RG, a minha idade: eu não seria capaz de responder.

Estou disposto a sacrificar um rim, um pulmão por minha filha, estou pronto para trocar de lugar com ela. Em silêncio, em segredo.

Estou mudo! Todos os meus esforços estão concentrados para atravessar a areia movediça.

A pequena mão quente de minha filha Dodó me reconecta ao nosso mundo competitivo, posudo e hipócrita. Passo em frente a uma Igreja, mal consigo finalizar uma oração.

Todos são bons em dar sermões! A passagem bíblica de Cristo chorando pelo amigo Lázaro sempre me comoveu. Tudo que é humano me comove. Penso nos meus amigos e minhas pernas ganham forças.

Isadora me mostra uma borboleta colorida. O meu mundo cinza ganha cores. Ela ri e diz que aprendeu a assobiar, e que vai ensinar seu primo Tutu. Seu assobio é um sopro, mas um sopro puro e inocente de vida.

A criança não entende o que é hierarquia. A brincadeira na poça d'água, a borboleta, o assobio, o pássaro que passa sobre nós em plena selva de pedra: possuem o mesmo valor. Tudo representa a vida.

Recebo uma mensagem no celular dizendo que a cirurgia foi um sucesso. Choro, mas sinto que não é de tristeza. A areia movediça ficou para trás. Talvez ela me devore na próxima esquina, ou só no fim da minha estrada, mas nada vai me impedir de caminhar. Afinal de contas, amar é melhor que ser amado, pois faz a vida valer tanto a pena que nos opomos a tudo que é cruel e mau.

Esqueço de mim no amor por uma outra vida. Apesar disso, e aí está o paradoxo, nunca quis viver tanto quanto agora, quando dou um valor menor à minha própria existência, quando penso que a vida da minha filha, ou a vida de todas as crianças do mundo, ou a sobrevivência do nosso planeta: é mais importante do que eu.

O mundo ficaria muito melhor sem o meu ódio ou as minhas vaidades ou os meus julgamentos. Nunca tive tantos motivos para estar vivo, talvez isto seja a minha conclusão sobre algo que nunca terá fim. E muito menos um nome. E que só pode ser sentido, mas jamais traduzido...

Como se traduz o assobio de uma criança de 4 anos? Cristo chorando por um amigo? Uma borboleta colorida num dia cinza? Sua filha sobrevivendo? O perdão?