Cassiano Antico

Pandemia mostra como somos intolerantes até aos sinais de vida

A real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz

Brinquedos
Foto: Markus Spiske/Pexels/Creative Commons

 
Quanto menos as pessoas souberem como se fazem as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite
-- Otto von Bismarck

Quem acompanha minha coluna semanal Papo de Pai sabe que tenho duas filhas: uma de 4 e a outra de 7 anos. São crianças que iam quase que diariamente a parques públicos, caminhando de mãos dadas comigo e com a mãe para a escola, que iam brincar em festas de aniversários, correndo livres com seus amiguinhos. No momento, elas só têm o espaço de um apartamento achatado para suas imaginações e alegrias que não cabem em seus corpos pequenos e elétricos.

Lembro de alguns anos atrás, sem pandemia, mas com pessoas tentando sobreviver, como sempre. Eu tinha uma vizinha com dois filhos pequenos que havia acabado de se separar do marido, ele se mudou para outro estado e ela estava sozinha se desdobrando para criar aquelas duas crianças. Lembro-me de barulho de bola, correria, risadas, coleguinhas, e tudo isso alegrava o meu coração, pois naquele pequeno apartamento tinha vida.

Fazendo um parênteses, recorro ao "Não matarás", o sexto Mandamento da Lei Deus, dado a Moisés no Monte Sinai, em duas ocasiões, e que são amplamente acolhidos como imperativos espirituais e morais por biblistas, estudiosos, historiadores e teólogos, tanto cristãos como judeus. Entretanto, desde os tempos mais remotos, o homem tem  destroçado as duas tábuas de Moisés. Ou as usam de acordo com suas conveniências e benefícios.

"Não matarás!" Mas se for para defender um interesse, um país, colonizar um continente, dizimar uma população: assassinam, muitas vezes, inclusive em nome de Deus. Em grau menor, defenda o seu e dane-se o resto. E fecho o parênteses para lembrar do que construímos com o simples exercício de se colocar no lugar do outro.

Eu entendi a minha vizinha, sozinha, com dois filhos pequenos. Coloquei-me dentro daquela casa e não virou menor incômodo o barulho de bola, bicicleta ou o que quer que fosse. Passou, eles cresceram.

Hoje são minhas pequenas filhas, enjauladas por um tempo maior do que o previsto. Alguém previu o que estamos vivendo? As aulas são pela internet, inclusive as de educação física. Minha caçula pega a espada e diz que seu sonho é matar o coronavírus e salvar as pessoas. Já contei aqui.

E agora somos atacados pela intolerância. Berram pela lei do silêncio. Pessoas se irritam e até denunciam os risos e as brincadeiras de crianças na pandemia. O que poderia ser música ao coração, num momento tão triste e difícil que vivemos, vira raiva e irritação para os desalmados.

Há um filósofo grego que afirmava que podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz. A luz é alegria, é criança. 

Desconfio de muita coisa do nosso mundo, tenho muitas dúvidas, mas acredito como um São Tomé no barulho de uma criança.