E começo aqui com um trecho da carta de Mário Quintana a um poeta: "O Profeta diz a todos: 'eu vos trago a verdade', enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: 'eu te trago a minha verdade.'
E a lua está boiando no céu azul e é minha filha de 4 anos quem me mostra; ela aponta com um dedo. A outra filha me mostra o sol; ele está tímido diante da lua. E eu estava olhando pro chão. Minha cabeça estava na dúvida; se teremos paz esta noite; se será o sino ou o toque de recolher; se será o grito de guerra ou o grito primordial, o da vida, a esperança, o parto.
A lua que contém o lado escuro, escondido, como todos nós, hoje: quer luz, quer respirar o dia. E o sol: um pouco de sombra.
Gostaria de me desnudar de tudo que me impede de ser feliz nesta vida, livrar-me de todas as cores que me borraram os sentidos. Até consigo reparar no outro, mas a tarefa de interpretar-se é individual e intransferível, como são as experiências da vida. Como é o primeiro beijo. Enquanto divago, uma borboleta amarela pousa no meu braço; eu observo, fico comigo.
Não existe motivo para nos comparar com os outros... E, infelizmente, é o que mais fazemos. Como uma gangorra. Ora estamos em cima, ora embaixo. Uma filha vê a lua, a outra vê o sol, e eu fico com o chão.
Como Hermann escreveu em "Demian" que se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Deves contemplar o fogo, as nuvens, e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma, abandona-te a elas. A ave saiu do ovo. O ovo é o mundo.
E Hesse vai fundo (voando alto!) quando diz que quem quiser nascer tem que destruir um mundo. As crianças fazem isso o tempo todo. Os adultos que constroem muros, bandeiras, palavras de ordem, meias-verdades, mentiras, templos, bombas, prisões, patentes, cartolas. Enquanto isso: os pequeninos, inocentes, brilham como raios de sol por entre nossos escombros, resguardando - como fiéis protetores -, a felicidade da humanidade.
E mesmo consumido por dores nas articulações, nos músculos, no corpo todo: enfrento o dia como um soldado valente; um prisioneiro de um campo de concentração que se agarra à fotografia da mulher amada, para dar mais um passo na direção do tiro ou da liberdade. Aceito o soco e o beijo. Não escolho. O que vier: eu mato no peito, como tenho feito. E o farei enquanto respirar.
A outra saída, a mais fácil, porém, não é para mim. Sou católico. Às vezes, sinto uma certa inveja daqueles que fecham a conta, que partem pelas próprias mãos. Porque nosso mundo é um hospício. Um lugar, muitas vezes, execrável. Miserável, falso, triste e que a gente tem que engolir.
Procuro ficar na parte mais funda do rio para não me contaminar com tanta maldade. Cada vez mais fundo, cada vez mais sozinho, cada vez mais distante: sou capaz de tatear estrelas à meia-noite. Ou quando subo à superfície, posso ser presenteado com um sorriso de criança. E, através deste sorriso, posso ver o sol e a lua juntos ao meio-dia.