Hugo Brito

As cores das músicas (e como deixar de ver em preto e branco)


Cena de "A vida em Preto e Branco"

Comecei a pensar nessa coisa visual em relação à música quando me lembrei de um filme, “A Vida em Preto e Branco”. Ele começa sem cores e elas vão aparecendo gradativamente, à medida que acontecimentos – que não vou detalhar para evitar spoiler - vão se desenrolando.

A única coisa que posso dizer e que será suficiente para entender por que eu trouxe esse filme para o nosso Encontro Sonoro de hoje é que as cores aparecem à medida que as pessoas da cidade vão saindo de um comportamento, diria, monocromático.

Lápis de cor

Ano que vem faço 50 anos e, desde menino, sempre gostei de música e sempre ouvi coisas diversas. Meus pais, que são gaúchos, colocavam vaneirões, música sertaneja de raiz, mas também tínhamos em casa discos de Chubby Checker, Ângela Maria, Agnaldo Timóteo, Nelson Gonçalves e por aí vai. Minha adolescência foi chegando e fui misturando com rock, pop...

O curso de inglês foi evoluindo e mergulhei em The Cure, Morrissey, Pink Floyd e muito mais.

Conheci amigos do interior e fui entrando no mundo de Geraldo Azevedo, Xangai e por estar na Bahia fui inundado de Forró, Axé, Reggae, enfim, seguindo essa conexão entre música e cores poderia dizer que minha influência musical parece uma grande caixa de lápis de cor.

Com essa minha forma de me relacionar com a música acabei transferindo isso um pouco para meus filhos e fico super feliz quando eles estão no carro e rodam as playlists cheias de funk, pagodão e de repente vem rock, samba, bossa nova e pitadas de Luiz Gonzaga, Adoniram Barbosa e Bach.

Música monocromática

O que me preocupa é ver que essa multiplicidade de cores musicais está ficando cada vez mais rara. Claro que todos temos o nosso estilo principal mas essa onda de que só existem dois lados, o certo e o errado, ou é roqueiro ou é funkeiro e a tendência de  dizer que um estilo é bom e outro é ruim, na minha forma de pensar, é tudo uma forma empobrecedora de encarar, além da música, a vida.

O ser humano tem muito mais que dois lados e uma de suas expressões mais ligadas à alma, a música, não poderia ser diferente.

E essa demarcação de só aceitar um estilo e rechaçar os outros ainda causa o mesmo efeito do filme, só se enxerga sem cor, ou seja, só um estilo de música presta e o resto nem é digno de ser ouvido. Veja que falei “ouvido” e não admirado.

Distorção de cores

Cabe aqui um pensamento. Quando falo de ouvir digo sem preconceito. Ouvir para torcer a cara não vale. Uma professora minha de muitos anos atrás, Cathy Chesterfield, contou uma história que acho que cabe aqui.

Falando sobre o estudo de inglês ela disse que não adiantava a gente querer aprender a língua deles com base na nossa visão de mundo. Para ilustrar Cathy contou que em um determinado país todos ao nascer todos recebiam, ainda na sala de parto, lentes verdes sobre os olhos. Tudo então que passava pelos olhos desse povo foi sempre esverdeado.

Na história da professora ela então falou que, em um outro país imaginário, todos ao nascer recebiam lentes vermelhas. Um dia um estudioso do país de visão vermelha viajou para uma imersão cultural no país da lente verde. Anos depois ele estava de volta e dava palestras, sempre lotadas, sobre as experiências de um país onde todo mundo via numa cor diferente da deles... Via em amarelo!

Aceitar outras cores

 O que o estudioso fez? Enxergou o mundo do outro povo simplesmente colocando a lente deles sobre a que já estava em seus olhos, o que transportando para a cultura e para a música, nosso assunto por aqui, é a mesma coisa.

Ouvir uma música sob a ótica do estilo que se prefere distorce as “cores” dessa música. O fato é que obviamente é muito difícil se retirar o filtro cultural daquilo que se gosta e, portanto, nesses casos é preciso se adotar, penso, uma postura de respeito ao estilo que difere do seu.

Tenho amigos rockeiros que se referem a outros estilos como porcaria, como “não música” e tenho o mesmo comportamento de alguns que gostam de outros tipos. Assim como no filme, eu digo amigos, olhar tudo apenas pela nossa ótica, julgar tudo rapidamente pela nossa forma de ver o mundo, seja nos comportamentos culturais, seja especificamente na música, torna tudo pobre de cores, de diversidade.

Então, da próxima vez que ouvir algo diferente do que está acostumado a gostar, se deixe pelo menos ouvir. Afinal, como dizem em uma música os “Mulheres Negras” – projeto espetacular de André Abujamra e  Maurício Pereira no final da década de 80: “Música serve pra isso”.

No vídeo
Os Mulheres Negras - Música Serve Pra Isso