Hugo Brito

Nunca fomos tão brasileiros

Foto: Alana Sousa

Abro nossa conversa de hoje amigos com esse título que deu nome ao disco que foi motivo da reflexão dessa semana. Ouvindo as músicas da Plebe Rude nessa obra que saiu em 1987, fui passando pelas faixas, lembrando do momento em que vivíamos no país quando foram lançadas e também da vez que pude ver a banda tocar elas na Concha Acústica do TCA, aqui em Salvador. Nessa viagem vi que a nossa brasilidade, título desse disco, é cada vez mais real.

1984

Não, esse não é o ano do disco. Como falei ele saiu em 1987. Algumas composições foram feitas em 1984, é verdade, mas não é por isso que esse ano especificamente veio à minha cabeça.

Fiz essa ligação porque, ouvindo as letras e sentindo o clima dado pelas execuções e gravações primorosas, resultado da ótima banda e da produção de ninguém menos que Hebert Viana, transportei-me para um livro que, vira e mexe, volta à minha cabeça, uma obra que leva exatamente esse ano como nome: “1984” de George Orwell.

Se você não leu ainda vale a pena, mas vou aqui dar um leve spoiler que não perturbará a leitura. Nele é descrito um mundo fictício (?) onde as pessoas são manipuladas pelo estado, chamado de “O Grande Irmão”. Ele tem telas que enxergam tudo o que as pessoas fazem e que enviam para elas mensagens e determinações num conectado mundo fictício (?). O objetivo é moldar desejos, ações e sugestionar comportamentos e pensamentos.

Conectados

Passeando por letras como as de Bravo Mundo Novo que em um trecho fala “... Se eu lhe dissesse: Olhe além do horizonte, será que você olharia? ... Bravo mundo novo está nascendo e, pelo visto, vai te surpreender um dia...” não dá para ficar sem pensar nas mudanças cada vez mais rápidas na nossa sociedade.

E vale lembrar que nem celular existia ainda quando o disco foi feito, o que torna as frases acima meio premonitórias, especialmente ao serem conectadas às de outra letra, Nova Era Tecno: “... Na nova era tecno, quem é culpado pela ação? Operador ou robô?... Na segunda revolução industrial a máquina substitui o trabalho mental... Nova era tecno te deixou pra trás...”.

Ainda ela...

Lá fui eu ouvir uma outra música, Censura, e em pleno 2020 tive a sensação de desconforto ao ver que a “tal” parece estar aí ativa, e ainda mais cruel. Em vez de sensores que cortavam músicas pelo que diziam a coisa agora é muito mais sofisticada e vai na fonte, matando a arte na origem com absurdos como um esforço para calar artistas pela desidratação financeira, com a liberação do uso de obras em eventos oficiais e filantrópicos sem pagar e ainda com isso liberando a livre apropriação de expressões artísticas para fins políticos, impedindo os artistas de evitar que suas obras se colem a ideais diferentes dos seus.

Essa ação se junta à de outras frentes obscuras como a colocação de rótulos do tipo “são parasitas que vivem de leis de incentivo” ou “não permitiremos dinheiro público para filmes comunistas ou que vão contra a família” (tsc,tsc) e tudo isso nos leva de volta à música que atira: “...abaixo a cultura, viva a ditadura.”.

A Ida

Vendo a discussão e as reações da sociedade em relação ao aborto autorizado para uma garota de 10 anos, em um daqueles dilemas éticos monstruosos já que, queiramos ou não, morreu uma, digamos, quase criança – um bebê de 5 meses de gestação - para que fosse possível a sanidade e a vida de outra criança, a música “A Ida” me pareceu meio que resumir toda o fato do monstruoso caso de estupro seguido da gravidez violenta de uma criança ter exposto a decepcionante falta geral de empatia das pessoas que, de ambos os lados, nem de longe mostrava real preocupação com a vida dos envolvidos diretamente – o bebê e a mãe vítima de abuso, e que simplesmente apoiavam suas posições  em bases egocêntricas lastreadas em palavras frias ora de dogmas religiosos ora de leis.

A música fala assim: “Quem tem a razão, um burocrata ou um padre com evangelho nas mãos?... A lei não ressuscita, burocratiza o que eu já sei... Aceitar ou não... palavras não justificam uma ida em vão... crença nenhuma justifica a ida em vão... esclarece por favor: o que é tão temido só acontece com os outros. Me mostre então, a ida sem razão.”.

Rindo de você

Olha, nem eu mesmo depois de ouvir tantas vezes esse disco da Plebe Rude tinha entrado em tantas interpretações. Ligar ao livro de Orwell – o que aconteceu enquanto dava uma escapada do isolamento dirigindo e ouvindo – efetivamente ajudou. E os meus quase 50 anos também.

Quando ouvia na adolescência frases da música Códigos que dizem: “Você acha que é livre para agir como quer... estou rindo de você... o seu direito é me obedecer...” tudo que vinha era aquela revolta contra o sistema, ainda mais pós ditadura. Mas agora, a sensação é outra. É doída pois ultrapassa a revolta e chega à constatação da capacidade de manobra que o poder exerce sobre a sociedade, muitas vezes indefesa, sem condições de reagir.

Veja esse trecho: “...Se eu largar a sua mão você vai se perder... Eu já estou até aqui de corrigir você...”  e depois assista ao noticiário político/econômico.

Para assustar mais basta acrescentar a tudo isso o movimento impressionante de popularidades de figuras, empresas e instituições públicas e privadas de um modo geral que sobem e descem como marés em meio a um grande espetáculo como os do teatro Vaudeville, claramente buscando apenas entreter com performances desconexas, verdadeiras esquetes ora cômicas ora trágicas, formando um grande mosaico que prende a atenção e evita maiores reflexões aprofundadas sobre temas, excessivamente picotados, de acordo com os interesses do momento.

Para fechar, em mais um ano eleitoral, vem de cara o trecho: “Você não é ameaça para mim. Faça o que bem entender. Esteja a par do que vai acontecer. Depois acerto as contas com você...”.

“...Se você falar mentiras sobre a gente, falamos a verdade sobre você...”

Esse trecho de Mentiras por Enquanto conecta de novo a música, o livro de Orwell e a nossa vida atual. Na desconcertante frase temos o cenário dantesco que está posto pela enxurrada descontrolada de notícias e dados onde uma informação mentirosa pode virar verdade e um fato pode se tornar mentira em segundos.

E nessa loucura de mundo onde saber e dizer que sabe se misturam, um outro trecho dessa vez da canção Nada, é um verdadeiro chute na boca do estômago: “Entendeu o que quero dizer? Entendeu o que quero fazer? Se entendeu, não entendeu nada por que não estou dizendo nada.”

Brasileiros

Encerro essa viagem livre de conexão entre George Orwell e Plebe Rude com mais uma provocação na qual entendam amigos me incluo, pois, sou brasileiro também.

Na música que leva o nome do disco trechos vão construindo o que somos, a nossa persona tupiniquim e pelo menos devemos parar um instante para pensar ao ouvir: “Nasci aqui, mas não só eu. Você está nesse barco também. Parece que é um paraíso. Parece que eles vivem aqui... Não temos identidade própria. Copiamos tudo à nossa volta. Do que adianta vocês viverem assim? Ser prisioneiros no seu próprio jardim...Nunca fomos tão brasileiros.”.

Hoje tem Live

Pessoal, seguindo com o projeto “Encontro Sonoro” hoje à 19 h no canal da coluna no YouTube (https://www.youtube.com/channel/UC7kt_HiDnKxUAvKNaywMrsw) tem um bate papo com o Blues man baiano Eric Assmar. Inscreva-se no canal e clique no sino para não esquecer.

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