Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 21 (ou 21ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Sandra ligou pra avisar que não viria aqui essa semana, porque tava chateada comigo.

Falou que era por causa do xô pra lá que dei nas duas sábado passado...

Gente, confesso que nem lembrava do incidente!

Fiquei triste, e disse que nunca antes na história desse país sanatório tinha me sentido tão rejeitada.

Ela deu uma baita gargalhada, e falou que tava só me testando, pra ver se a aglomeração em meu quarto tinha sido liberada...

Desliguei na hora, e mandei um zap:

Teste não é salvo-conduto!

Teste não é salvo-conduto!

Teste não é salvo-conduto!

Teste não é salvo-conduto!

Teste não é salvo-conduto!

Teste não é salvo-conduto!

Teste não é salvo-conduto!

Tô certa ou tô errada?

***

Terça-feira. Acordei com sentimento de culpa, por causa de Sandra, e fui ver se tava bem na fita com minha vizinha, porque os humores das duas são que nem unha e carne, né? Não se desgrudam...

Mas assim que pus o pé na soleira...

— Quanto mais eu rezo, mais verme aparece!

Tomei um susto tão grande, que bati a porta em minha própria cara...

Mas aí ela correu pro olho mágico e explicou que o impropério era contra um magistrado de segunda do manicômio.

Contou que o sujeito tinha humilhado um fiscal de máscara e ofendido uma moça, dizendo, sem dizer diretamente, que remédio pra acalmar mulher é homem!

Até eu me aborreci...

Tanto, que dei uma de Piti e berrei:

— Ozônio nele!

Acho que ela gostou, porque se embolou de rir e ainda fez coro...

— Desembargou, juízo!

Vi que ela tinha cometido um erro, porque masculino de juíza não é juízo, né?

Mas não disse nada, pra não acabar com o clima de camaradagem...

Fiz bem?

***

Quarta-feira. Sandra entrou no meu quarto no módulo sonâmbula, que é quando ela quer estar junto de alguém, mas não quer conversar com esse alguém, porque quer pensar...

Dá pra entender?

Eu tento, mas daí ela faz uma pergunta, e quando eu respondo, diz que não tá falando comigo, que o papo é com ela mesma...

Confuso, né?

Então... ela chegou aqui hoje nesse modelito, caminhando e cantando... quer dizer... pensando.

— A pandemia nos obrigou, gostando ou não, sabendo ou não lidar com tecnologia, a conciliar dois mundos: o físico e o virtual.

Lembrei de minha pintassilga, e refleti que os universos paralelos em confluência eram três, porque tinha o espiritual.

Mas não é que até pensando a criatura é do contra?

Segundo a cricri, no meu caso, não eram três, mas quatro dimensões, porque tinha outra, beeeem (desse jeitinho mesmo) débil: a mental.

Fiquei matutando se, a rigor, a rigor, tinha sido um ultraje...

Só que como ela pensou e vazou, quem ficou cantando e andando fui eu!

— Mas eu me mordo de ciúuuuume!

— Mas eu me mordo de ciúuuuume!

***

Quinta-feira. Piti tava in-su-por-tá-vel, hoje! Chegou aqui com aquele papo de 'mecanismos automatizados de legitimação de preconceitos, que emitem significados, à revelia mesmo de quem inadvertidamente os constrói — ou opera'.

Já viu tudo, né?

A vítima da vez foi a obra de Chico Buarque e "seus rastros de racismo" (coloquei aspas pra não ficar em dúvida, depois, se foi mesmo ela quem disse esse absurdo ou se fui eu...)

Citou o refrão de "Meu caro amigo" ("mas o que eu quero é lhe dizer / que a coisa aqui tá preta...").

Uai... O que ela queria? Que ele dissesse "a coisa aqui tá branca"?

Mas eu só pensei, tá? Não disse nada. Achei melhor não provocar.

Pra completar, meteu o pau nos versos de "Geni e o zepelim" ("de tudo que é nego torto / do mangue e do cais do porto / ela já foi namorada / o seu corpo é dos errantes / dos cegos, dos retirantes...").

Achei demais e gritei pra ela:

Cálice! Cale-se!

Pra ela parar de procurar política onde só tem poesia, porque Chico não é disso, ora bolas!

***

Sexta-feira. Sandra chegou aqui revoltada, porque disseram que o chefinho do sanatório tá cogitando colocar um psiquiatra no comando do posto de saúde.

O que eu acho absurdo é o posto estar esse tempo todo à deriva, mas psiquiatra administrando posto de manicômio é mais que adequado, não?

Se eu não falei, eu pensei alto, porque ela fez uma malcriação que eu vou te contar!

Disse que o problema era que o cogitado achava que a mamona o bicho assassino era só um “virusinho”, mas que o pior pra ela era o apoio de certos cerebrozinhos...

Depois, me encarou de um jeito que eu pensei que ia me abduzir, e saiu esperneando.

Fiquei aqui pensando no tal soro de plasma de cavalo, que, segundo os cientistas, é 50% mais potente contra o coronavírus do que o dos humanos...

Acho melhor essas duas nem chegarem perto!

Sabe-se lá que efeito ele pode intensificar...

Né?

***

Sábado. A rotina do meu quarto voltou ao normal... ou ao anormal, sei lá eu... ou seria ao novo anormal?

Ah!

Quero dizer que depois de uma semana tumultuada, passei o dia só.

E os silêncios se multiplicaram em saudades, dúvidas, ansiedades e temores diante do futuro incerto, ou da incerteza de um futuro...

Mas quando ergui os olhos pro céu e perguntei “cadê você?”, uma pena amarelo-dourada desceu planando até o parapeito de minha janela.

E tive a nítida sensação de estar ouvindo Winnie conversando com seu ursinho de pelúcia, o Pooh.

— Se houver amanhã, e não estivermos juntos, há algo que você deve sempre se lembrar. Você é mais corajoso do que você acredita, mais forte do que parece, e mais esperto do que você pensa. Mas o mais importante é que mesmo se estivermos separados, eu sempre estarei com você.

***

Domingo. Piti e Sandra entraram aqui aos prantos. É raro, elas aparecerem dia de domingo, ainda mais chorando...

Então, vi que a coisa era séria, e perguntei qual era o apocalipse da vez.

— Vai ter queima de livros!

Pensei: uai... e isso é ruim?

Mas ainda bem que a pergunta não saiu da ponta da língua, porque assim que Piti anunciou, Sandra preveniu.

— É queima de estoque não, tá?

E explicaram que alguém da equipe econômica do sanatório tinha decidido que livro era coisa de rico, e ia tascar imposto em cima, o que na prática significava tascar fogo em um monte de obras e autores...

Entendi que era a reconfiguração da queima do conhecimento perpetrada nas fogueiras da inquisição, nas piras do nazismo...

Daí, veio à minha cabeça o óbvio!

— Gente, mas desde quando livro é coisa de pobre...

Tomei um catiripapo que nem consegui completar a frase!

E só ia perguntar desde quando livro é coisa de pobre de espírito, ignorante, insensível...

Eu, hein? Depois dizem que o inferno são os outros...

(porque hoje é domingo...)