Suzana Varjão

O ônibus (e o embate de uma menina com uma borboleta de ferro)


Foto: Suzana Varjão

A fila dobra a esquina da rua da mercearia e desaparece. Está há mais de uma hora no ponto, mas nada de ônibus. Sente como se tivesse um buraco no estômago, e já não aguenta levantar os braços para proteger o rosto da luz do sol. As pernas então... Se pudesse pelo menos sentar na calçada... Mas tá brilhando de tão quente.

Melhor desviar o foco do pensamento, usar o truque do "faz de conta", pensar que está em outro lugar, fazendo outra coisa, como quando não tem almoço e o cheiro do feijão da vizinha invade a casa, futucando a fome ("fechem os olhos, respirem bem fundo e imaginem que estão comendo. Respirem e mastiguem, respirem e mastiguem...").

O que terá acontecido com sua mãe dessa vez? Pra onde a terão levado? Quanto tempo ficará sem vê-la?

Tenta equilibrar o caderno sobre a cabeça, quando sente um encontrão, e outro, e mais outro... E o que era uma carreira de gente vira uma confusão de braços e pernas que a atingem de tudo quanto é lado. Prestes a se estatelar no chão, é agarrada por um dos braços e empurrada pra dentro do coletivo.

— Tudo bem, garota?

Levanta as vistas e se depara com um homem forte, grisalho, de lábios grossos e pendentes. Gostaria de dizer que sim, que estava tudo bem, mas as mãos, agora, apertam uma maçaroca de folhas de papel pautado amassadas e rasgadas, o que significa apontamentos e deveres perdidos...

Além do mais, a mãe ensinou a não dar trela pra estranhos, não alimentar papo, não aceitar qualquer tipo de agrado... Será que isso foi um agrado? Pode até ser, mas se não fosse ele, tinha caído, podia ter se machucado, morrido, até, como a menina do segundo andar, não sabe por que, só que era muito desobediente.

Mas só agradecer não é desobediência. É educação... Balança a cabeça em sinal de assentimento e desvia rapidamente o olhar para o interior do coletivo. Não há sequer um lugar vago. A mão esquerda comprime o que restou do caderno contra o peito enquanto a direita tenta segurar um dos canos de metal fixados acima dos bancos.

O chiado das portas indicam o fim do embarque, a marinete dá um solavanco e parte.

Quando a rotina de volta da escola muda, fica em alerta. Sinal de que algo fora do normal está rolando, quase sempre com ela... Deve ser bem sério, dessa vez, porque nunca tinha voltado sozinha pra casa, embora implorasse, afinal, sabe de cor e salteado onde pegar a condução, pagar a passagem, descer no fim de linha...

— Olha o geladinho! Olha o geladinho!

Passa a língua pelos lábios ressecados e desvia as vistas dos saquinhos coloridos colocados em cima da caixa de isopor, pra atiçar vontades. O dinheiro da passagem está justo, justo. Nem um centavo a mais. Tinha contado as moedas umas mil vezes, antes de embrulhá-las e enfiá-las na meia três-quartos. A diretora do Educandário Feminino lhe havia entregue, a pedido da irmã mais velha, que não pudera buscá-la, não soube dizer o porquê.

Algumas freadas depois, percebe que o esforço de manter-se agarrada à alça de segurança, grossa e escorregadia, é inútil. Desnecessário, também. O entra e sai de gente não modifica o (não) espaço ao seu redor. O desequilíbrio em grupo desloca seu corpo, machuca, mas não consegue derrubá-la.

Apesar do sufoco, é muito melhor do que voltar andando, como tantas vezes faz, com a irmã — o que aliás se tornou mais frequente quando os cobradores começaram a achar que ela já estava grande demais pra não registrar a catraca, e, em vez de uma, tinham que pagar duas passagens.

Demoram quase duas horas andando, às vezes debaixo de chuva (não sabe o que é pior, se o aguaceiro ou esse sol de lascar a moleira do meio dia). Dá vontade de chorar subindo a ladeira do IAPI, tão empinada que as latas mais velhas têm que cuspir passageiros para prosseguirem, estrebuchando e vomitando fumaça preta.

Ruim mesmo é quando a mãe se atrasa pro almoço, e têm que esperar nas escadarias do prédio, espiando pelos buracos do cobogó e torcendo para que ela apareça, a cada ônibus ou lotação que chega. Às vezes a vizinha chama — "esperem aqui", "estão com sede?" —, e é um alívio, aquele sofá macio, aquela água fresquinha...

— Para aê! Para! Paaaaara!

Os gritos veem da frente e ecoam por todo o ônibus. Estica pés e pescoço e avista uma mulher esmurrando a porta, esbravejando e apontando para a rua. A condução estanca, ela salta, corre e se acocora diante de bananas, laranjas e outros produtos esparramados no asfalto, muitos esmagados pelos pneus dos carros.

Pelo falatório, que se estende por um bom tempo, compreende a imprudência do motorista: tinha fechado a porta e arrancado a lata ambulante antes de a passageira conseguir saltar no ponto de parada, derrubando a sacola com a feira do dia, quem sabe da semana ou do mês. Que desastre!

Bem que podia dividir o assento com o menino ajoelhado no banco e debruçado na janela... Pensa em pedir à mulher sentada ao lado dele, com uma trouxa de roupa no colo, mas ele não para de enfiar o dedo no nariz, mesmo depois dos tapas que leva toda vez que ela percebe o movimento.

É muito chato esperar naquela escada, cansada, com fome, com sede, às vezes tremendo de frio; outras, derretendo de calor. Mas prefere mil vezes isso à notícia de que foi internada mais uma vez, o coração podendo parar a qualquer momento, os filhos menores sendo mandados para a casa de um e de outro, até pro orfanato...

Ninguém entra em casa sem ela. Acha perigoso dar a chave, mesmo pra a irmã mais velha, porque "não tem malícia", pode "cair na lábia de gente mal intencionada" — o mundo tá cheio delas, vive dizendo, e redobrando cuidados com a segurança: nunca dormem com janelas ou venezianas abertas, e além de trancarem e colocarem o pega-ladrão na porta, encostam uma cadeira na maçaneta, com dois pés suspensos ("se alguém tentar entrar, a cadeira desequilibra, cai, a gente acorda").

Sente um leve frescor e percebe que o ônibus está mais vazio. Agora, sim, precisa tomar cuidado com os trancos. Tenta enxugar o suor que escorre pela face com uma das mangas da camisa, mas sente uma dor aguda no ombro. Com certeza foi o puxão do homem. Onde estará? Deve ter saltado, porque já não vê o boné branco se movendo.

Melhor assim. Menos arriscado do que coincidir de descerem no mesmo ponto, ele puxar assunto, ela ter que responder, algum conhecido ver, dedurar, achar que é desobediência... Sente um arrepio na espinha só de pensar...

Será que tem alguém esperando por ela no fim de linha?

No Largo do Tanque, muita gente desce do coletivo, liberando alguns lugares, inclusive um no banco em frente ao da mulher da trouxa, ufa, já não aguentava de tanta dor nas pernas. Dá um passo na direção da poltrona vaga, mas é empurrada por um moço de peito de fora, que dá um salto e se joga no assento de qualquer jeito.

— Que é isso, brô? Deixa a guria sentar...

Segue o som da voz e encontra o dono, que dá um sorriso. Ela retribui, não é nenhum desconhecido, é o cobrador de bigode e cabelo liso! Andava sumido, que bom que voltou. Sempre foi legal com ela e a irmã, nunca implicava quando passavam juntas pela catraca, economizando passagem pro dia seguinte.

Encara o homem sem camisa, ele vira pro outro lado, enfia os fones no ouvido e começa a cantarolar e a balançar a cabeça, se ouviu, fingiu que não... Uma parada depois, vagam três lugares no último banco. Encosta na beirada de um, e, com a mão livre, empurra o corpo, senta, ajeita a barra da saia.

Mira os pés e pensa na raiva que sente quando estão assim, dependurados, a mãe sempre justifica um monte de "não" apontando pra eles ("se você fosse grande, eles não ficavam no ar..."). Agora, não. Agora, isso alivia a pressão do sapato apertado, da queimação, da dor de ficar tanto tempo em pé, vontade ficar assim pra sempre.

Talvez ele deixe ela passar por baixo da borboleta de ferro, essa não tem aquela asa que vai até quase o chão, invenção pra dificultar a vida das pessoas. Dizem que também vão inverter as portas, a de entrada vai virar a de saída e a de saída vai virar a de entrada, não consegue imaginar como, nem pra que essa confusão, a troco de nada...

Depois dessa, só tem mais um parada até o fim de linha. A parte de trás do ônibus está completamente vazia, mas falta coragem de enfrentar a borboleta, pedir pra passar por debaixo, se ele não deixar vai ser uma vergonha... De vez em quando, dá uma olhada, às vezes ele sorri, pisca, faz sinal de positivo com o polegar, vai dando confiança.

Só tem uma mulher e dois homens na frente, em pé, aguardando o motorista parar no fim de linha. É hora de passar, pagando passagem ou não. Faz menção de se levantar, mas ele pede pra esperar, salta do assento, mais alto do que os outros, e senta no mesmo banco que ela, diz "deixa o ônibus fazer a curva, aí você passa".

O ônibus sempre para no fim de linha, mas depois faz a curva no Jardim Eldorado, antes de estacionar no ponto, que fica do outro lado da avenida, bem em frente ao prédio onde mora. A irmã também prefere fazer a curva, é melhor do que ter que atravessar a rua, diz que não tem problema quando tem mais gente, principalmente quando é gente conhecida.

O condutor para, os homens e a mulher descem, o ônibus arranca, ficam ela, o motorista e o cobrador de bigode e cabelo liso, mas ele não é nenhum estranho. E é bem legal. Com certeza vai deixar ela passar por baixo da borboleta, pode até ajudar ela a pular, com certeza por isso pegou na mão dela...

Mas o que ele tá fazendo? Com a outra mão, abre o zíper da calça e põe pra fora um negócio mole e enrugado, parecendo uma minhoca grande... Lembra que a mãe fala que menino é diferente de menina, menina tem perereca, menino tem pinto, mas isso não parece nada com um pinto... A mãe nunca deixa o irmão tomar banho junto com elas, nunca trocam de roupa na frente dele, ela diz que não é certo...

Então, isso não tá certo... É desobediência!

Dá um puxão no braço, desprende a mão, pula do banco, passa pela catraca, grita, o motorista freia, ela se precipita para a porta, ainda aberta, tropeça nos degraus, a vista escurece, mas logo a luz volta. Sensação estranha, como se estivesse voando... De onde surgiu tanta gente? Por que será que a irmã tá chorando?

(porque hoje é domingo)