Foto: Suzana Varjão
Sentada na beirada do píer, pés imersos n´água, observa o corre-corre das ondas, do lado da praia, e a calmaria anestesiante do mar sob a linha do horizonte, na direção oposta — um hábito cada vez mais corriqueiro, adquirido para diluir inquietações e resgatar o ritmo sem sobressaltos imprimido a seu dia-a-dia.
Passava horas tentando capturar o momento crucial da troca de humor das águas; o ponto exato em que aquele caudal espesso, azul e serenado se transformava nas rendas brancas, rarefeitas e agitadas que avançavam pela areia, desfazendo-se e recompondo-se incessantemente, sabe-se lá movidas por que força, com que propósito.
Naquele lugar, daquele ponto estratégico, tentava compreendê-lo melhor, para absorver ao máximo seus ensinamentos, a densidade de suas ponderações, que contrastavam com os pensamentos esgarçados que a assaltavam, não obstante a vigília, as preces, a vontade de alcançar o equilíbrio que ele deseja.
— É necessário amansar o espírito, dominar o ímpeto, pra que a luta de contrários se transforme em somatório de forças e a harmonia do todo seja estabelecida, que é o que importa.
Sempre que a turbulência se instalava nela, por meio de querências irrelevantes ou reações imponderadas, lembrava de tais palavras, ditas pela primeira vez quando se casaram e foram morar naquele vilarejo à beira-mar — paraíso que dispensava lazeres dispendiosos, permitindo a economia recomendável à formação de uma família.
Economia que transcendia, ou deveria transcender, a perspectiva material — daí o racionamento de emoções, as advertências contra veleidades. Estranhou, em princípio. Mas compreendeu, entre outras coisas, que uma maquiagem, um corte de cabelo ou um vestido novo não a modificavam aos olhos do seu companheiro, sendo desnecessárias exaltações.
Seriam antagônicos ou complementares? Ele explicava que complementares; que, como a turbulência dos bordados d´água, os arroubos femininos decorriam de baques com forças maiores, mas acabavam se desfazendo, ante a porosidade intrínseca aos pontos de recepção, possibilitando a concórdia entre as partes em conflito.
A coerência de seus argumentos e a beleza de suas representações ampliavam a vergonha que sentia quando fatos ordinários a desestabilizavam, como acabara de ocorrer, a caminho daquele porto seguro de reflexões, quando presenciara uma cena que não conseguia encaixar na linha de raciocínio à qual vinha se ajustando, ano após ano.
Caminhando pelo areal, notara o movimento atípico de milhares de peixinhos prateados aproximando-se e afastando-se da franja de espumas brincantes. As delgadas criaturas formavam um cordão que oscilava por toda a extensão da borda da praia, num espetáculo ímpar, de difícil descrição.
Ao lançar o olhar para além do trecho buliçoso das águas, percebera que o deslocamento do cardume tinha relação com o de outros peixes, de coloração cinza rajada de preto, alinhados a pouco menos de um metro da fileira reluzente. Menos numerosos, mais robustos, avançavam em direção aos miúdos e recuavam, provocando ação equivalente destes.
Captara, naquele momento, o significado da harmonia de que ele tanto falava. Suavidade e vigor em compasso — a força de um compensando a fragilidade do outro, impulsionando o movimento e dissipando hesitações, como as que a atormentavam, mesmo depois de unir-se àquele homem sem dúvidas.
Evoluíra, é bem verdade. Com o tempo, a atração por letras vãs foi empalidecendo, e a leitura da bíblia ganhando relevância. Dava preferência, ultimamente, aos trechos que ele recomendava, pois forneciam assuntos para conversas que ocupavam noites inteiras e a ajudavam a abdicar de quinquilharias — não só no sentido físico, também moral.
Ele reconhecia os progressos, se desdobrava em atenções: levava-a à igreja, ao supermercado, à farmácia, e mesmo, eventualmente, à casa da irmã mais nova, não obstante a má influência que exercia sobre ela, restaurando questões superadas, com conselhos para que voltasse a estudar, a trabalhar, e blá, blá, blá.
Mas restava um grande senão entre os dois: a ausência de filhos, que teimavam em não vir, apesar de há muito ter abdicado de vontades impuras que lhe envenenavam a alma, secando-lhe o útero, e de se entregar ao ato puro da fecundação, nos momentos e formas apropriados, sem reservas ou contestações.
Imersa em pensamentos, alcançara o ponto em que a interação entre o mar e a praia é interrompida, por conta dos arrecifes que brotam das águas e se projetam sobre as areias. Desta feita, em vez de contornar o obstáculo, como sempre fazia, decidira cruzá-lo, para não perder de vista a valsa dos peixes.
E deparara-se com centenas de filetes brilhantes sobre as pedras, alguns ainda saltando ou contorcendo-se, mas a maioria imóvel, como a colônia de corais, igualmente morta por falta do oxigênio do mar — cenário surpreendente e devastador, que reacendera a tempestade em seu espírito.
A visão dos pequenos seres esborrachando-se nos recifes inoculara nela a suspeita de que o fluxo e refluxo nos limites do mar ocorria pelo embate entre fortes e fracos, mas que daquilo não resultavam encontros, e sim despedidas; que aqueles fortes não ensinavam — encurralavam; que a suposta contradança era, na verdade, um jogo de vida e morte.
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Retira os tornozelos da água, massageia lentamente as cicatrizes decorrentes da fricção das cordas de sisal e decide que, ao contrário daqueles peixinhos encalhados, tomará a dianteira naquele tango fatal.
(porque hoje é domingo...)