Escritos

O dia em que fomos parados na estrada pela polícia cubana

E outras aventuras na última parte desse diário

A segunda parte dessa viagem à San Cristóbal de la Habana – Havana, a capital de Cuba - que celebrou, no último mês de novembro, 500 anos de sua fundação - relata uma selfie meia-boca que fiz com o rei de Espanha.
Dia 07

No mesmo Lada 1979 de Jorge Ferreira, vamos a la playa. Às 7h e alguma coisa já estávamos atravessando mais uma vez o Túnel de Havana com o Sol encoberto sob as nuvens e a informação de que uma frente fria ia chegar à Ilha a partir do meio da tarde. Pegamos os 140 Km da Via Blanca, uma estrada com pavimentação impecável e ladeada por matas e fazendas agropecuárias e, de outro, pelo mar do Caribe, com lindíssimos nomes de praias, como Mayabeque, Guanabo, Bacunayagua e Camarioca.

O nosso destino era Varadero, o grande balneário tropical de Cuba, com seus grandes resorts. Paramos no mirador da Puente de Bacunayagua para um café - onde para todo mundo que vai para as praias do Leste, transformando a lanchonete em uma Babel de brasileiros, cubanos, mexicanos, poloneses, norte-americanos, russos e chineses, mas que, incrivelmente, tem um serviço extremamente rápido e muito eficiente.

De volta à estrada, somos parados num posto rodoviário: Jorge, com 71 anos, está com a habilitação em dia, mas não fez o exame médico de atualização. Sua carta de condução ficará suspensa já nas próximas duas horas. Então, passo a conduzir o bravíssimo russo que nasceu antes da Glasnost. Freio duro, direção não-elétrica, apenas quatro marchas e um cockpit de kart para um piloto de 1,86m. Passamos por Matanzas - cidade litorânea e histórica - e, afinal, chegamos a Varadero.

Pisamos na areia e ocupamos três espreguiçadeiras e um sombreiro de palha de coqueiro do Hotel Barlovento. O cubano Leo nos ofereceu, clandestinamente, cervejas, mojitos e daiquiris. Como bons camaradas, topamos. E ficamos apreciando aquele lindíssimo e incrivelmente transparente mar azul-piscina do Caribe. Tomei um banho para “sargar as frieiras”, almoçamos em um restaurante típico de praia - comida boa e honesta - e tomamos o rumo de volta a La Habana. Nos perdemos por quase uma hora em uma estrada errada, na zona rural de Cárdenas, em que parecíamos entrar no túnel do tempo com suas centenas de carruagens, charretes, traquitanas, seges e carros-de-boi. Pela primeira vez, em minha vida, vi um engarrafamento de carruagens.


Com o Bahia no peito, no mar do Caribe

Afinal, retomamos os caminhos da Via Blanca. Depois de driblar uma vaca e uma dupla de panacas que empurrava um carro todo apagado pela rodovia, chegamos à capital cubana. Troquei a bermuda pela calça, a sandália pelo tênis e a camisa do Bahêea por uma camisa florida, típica de turista americano, e fui para a Plaza de Armas para a cerimônia de El Templete, lugar onde os habaneros celebram o aniversário da cidade dando três voltas, em sentido anti-horário, em torno da árvore ceiba, no marco da fundação de San Cristóbal de La Habana, em 1519.

As entradas da Plaza estavam todas bloqueadas por seguranças para que apenas “convidados” participassem de uma cerimônia que é eminentemente popular. A chuva caiu pesada e, enfim, a previsão do temporal se confirmou. Meio molhado, chego à esquina da Prado com o malecón. Nova barreira desde a Plaza Martí, mas digo que sou hóspede do Paseo Del Prado - a camisa floral ajudou - e chego às escadarias do hotel recém-inaugurado e ultra-sofisticado. Acesso o hotel para ir ao banheiro e beber dois mojitos. Volto às escadarias, a chuva cessa e, por volta das 22h, começam a espoucar os belíssimos fogos de artifício no céu.

Só chegaram à balaustrada da esquina do malecón com a Prado os hóspedes do hotel e os que ostentavam um crachá, inclusive a elite dirigente do país, com suas guayaberas brancas, enquanto a massa popular ficava represada por seguranças e barreiras de ferro. Depois dos fogos, a massa humana foi liberada para chegar à balaustrada, mas só restavam as estrelas do céu, cujo brilho era empanado pelas nuvens. Triste constatação: na pátria do socialismo, o povo era barrado nos principais locais da festa. Acho que se está precisando fazer uma nova Revolução em Cuba. Meu primeiro passo será comprar uma motocicleta e viajar pelas Américas.

Dia 08

Acordo com uma ressaca monstro, com a mesma intensidade do mar batendo na balaustrada do malecón, resultado da mistura de mojito + cerveza Cristal. Cheguei em casa às 3h30 da manhã, graças a Deus e à Dra. Jaqueline, que passava de carro acompanhada de João. Ela esteve no Brasil por 1 ano e nove meses, servindo pelo Mais Médicos em Santa Cruz do Palmar, no Rio Grande do Sul, já na fronteira com o Uruguai. Contou-me que adorou o nosso país e que fez amigos e deixou saudades nos pampas. Quando chegamos na porta de casa, perguntou-me como estava falando o português. Respondi: “barbaridade, guria!”. Foi uma benção, porque o quesito mobilidade em Havana não é para os fracos. E ainda pior quando uma multidão está nas ruas. Um trajeto que os habaneros fazem por 1 ou 2 CUC, para o turista pode sair por cinco ou dez vez mais. Como não existe Uber, tem mesmo é que pechinchar.

Saindo de casa, vou para a rua e fico no ponto quase em frente ao Cine Acapulco para pegar uma condução que me leve ao centro. Os ônibus estão lotados, os táxis coletivos, idem. Pego um táxi clandestino - os oficiais são da cor amarela - por 5 CUC, algo em torno de R$ 20. Geni, o motorista, disse que dá pra sobreviver com a renda mensal e que, por cerca de 30 CUC - R$ 120 -, dá pra fazer as compras de alimentos do mês. Conta que também seu irmão serviu, há 15 anos, como médico no Brasil, mas que, hoje, vive em Miami com a família.

Saio do Cohiba e pego outro táxi clandestino - um Chevrolet 1950 - para o Capitólio. A intenção era almoçar no Los Nardos, mas todo o quarteirão está fechado por seguranças, policiais e barreiras de ferro, para um espetáculo que só ia acontecer à noite. Contorno o Capitólio por detrás, na calçada oposta porque os seguranças - criaturas muito antipáticas em Cuba - não deixam nem caminhar sobre o asfalto. Vou almoçar no Más Habana, na Calle Cuba. Alguns mojitos pra rebater, um polvo com purê de malanga - uma espécie de mandioca ou inhame - e um delicioso creme de mamey servido na própria casca da fruta.

De lá, pego um riquixá puxado por bicicleta - é típico da paisagem da cidade, assim como os coco-táxis - até o Mercado San Jose, onde já namorava uma pequena escultura, em alpaca, feita com garfos e colheres, pelo artesão cubano Jorge Ramos. Os anéis, pulseiras, brincos e colares confeccionados por ele são verdadeiros objetos de arte. Rumei para a Plaza de Armas para o El Templete, lugar em que os habaneros dão três voltas em torno da árvore ceiba, pedindo proteção e felicidade. A fila era gigantesca, lembrando nossas comemorações populares, como a Lavagem do Bomfim ou o Círio de Nazaré. Resolvo voltar para o Capitólio, que continua todo bloqueado em seu redor. Digo que sou hóspede do Hotel Inglaterra - que fica colado ao Teatro Alicia Alonso - e passo pela barreira, enquanto uma multidão se acotovela nas grades. Mas, do hotel não posso passar.

Pongo no Wi-Fi, bebo uns quatro mojitos e quando saio, três horas depois, o espetáculo ao ar livre já havia começado, mas apenas para os poderosos e a elite portadora de crachá de Havana. A multidão, enquanto isso, pacientemente, assistia, de longe, o concerto do nada, porque sequer o som chegava no ponto da barreira mais próximo do Capitólio. Na pátria do socialismo, mais uma vez, o povo era pária. Una verguenza!

É preciso uma nova Revolução em Cuba. Vou começar a estudar como descer a Sierra Maestra. Enquanto isso não acontece, desço para Nuevo Vedado. Com o malecón bloqueado por causa da ressaca, milhares de pessoas a pé, ausência de táxis e ônibus socados, acabo pegando o táxi coletivo de Oscar, que levava dois casais de mexicanos para a balada. Por 10 CUC ele me deixa, gentilmente, em casa.

Dia 09

Domingo, ainda com o Sol meio encoberto, fomos visitar Maria Antônia, diplomata cubana que atuou no Brasil e trabalhou ao lado de Jorge Ferreira no Departamento de Relações Internacionais de Cuba. Ela se mudou de Calzada de Buenos Aires para a sua nova casa, número 116 da Calle Conill, em Nuevo Vedado, quando ficou viúva. Enquanto nos servia um ótimo café cubano, contou que fora visitar parentes em Cienfuegos e recebeu do seu único filho a notícia de que sua casa fora arrombada e lhe levaram todos os eletroeletrônicos. Os vizinhos já haviam dado queixa de 60 roubos na região. Finalmente, o meliante foi preso, confessou 15 baculejos e está condenado a 18 anos de prisão. Maria Antônia, então, gradeou varanda, portas e janelas da sua casa.

Nos despedimos e saímos em busca de um caixa eletrônico para sacar dinheiro. Não é tarefa fácil na Ilha: são poucos. Encontramos uma bateria com cinco, mas só um funcionava. Como estávamos no centro antigo, fomos almoçar no badaladíssimo La Guarida, na Calle Concordia, e que foi cenário do filme “Morango & Chocolate”. Foi a conta mais cara que pagamos em Havana - cerca de 30 CUC por pessoa, o que dá cerca de R$ 120 - sem que a comida e as cervejas justificassem tal exorbitância. O custo-benefício não justifica. Ainda zonzos pelos CUC despendidos, descemos as escadarias do La Guarida para dizer “hasta nunca más!”.

Atravessamos a Avenida Italia (ou Galiano), passando pelo mítico Teatro America, onde, em 1978, Chico Buarque fez um show memorável, em companhia de Pablo Milanés, Silvio Rodriguez e outros grandes da música cubana. Houve uma gafe histórica: o apresentador, Roque Fuentes, chamou ao palco “Direto da Holanda, o cantor Chico Buarque”. Em outro episódio, em fevereiro de 1978, Chico Buarque, Marieta Severo, Antonio Callado, Ana Arruda e a garotinha Kady, de quatro anos, foram detidos por agentes da Polícia Federal quando desembarcaram no Rio, depois de integrarem o júri do prêmio literário Casa de Las Américas, em Havana. Chico trazia charutos, livros e discos e a bagagem foi considerada “subversiva”.

Fomos ao Mercado San Jose, onde Xéu regateou, e levou, uma mochila de couro. Passamos no Museo Del Rum, mas os preços do Havana Club quase não têm diferença para de outros lugares da cidade. Seguimos para a Plaza de San Francisco, passando pela estátua do Caballero de Paris - um andarilho que perambulava pelas ruas de Havana e não aceitava esmolas: queria apenas livros, jornais e revistas. Era um erudito. Com o passar do tempo, os habaneros adotaram-no como uma pessoa imprescindível à cidade, cuidando de sua alimentação e de seu bem-estar. Deixamos o Centro, alcançamos a esquina da Prado e seguimos pela costa de Havana, que apresentava um espetáculo belíssimo: o mar encapelado se espatifava borbulhante na muralha do malecón.

Antes de pongar no Wi-Fi do Meliá Cohiba, ficamos na pracinha vendo as ondas se arrebentando e um grupo de jovens jogando capoeira e cantando “paranauê, paraná”. Em outro canto, meninos brincavam de beisebol, o esporte nacional da terra de Fidel. Não era futebol, mas a bandeira tricolor de Cuba - azul, vermelho e branco - tremulando no mastro do Meliá me lembrava que o Bahêea estava em campo, jogando contra o Palmeiras.

Dia 10

No nosso último dia em La Habana fomos logo a dois museus para exorcizar a má impressão que ficou das comemorações dos 500 anos, quando o povo ficou totalmente apartado da festa. E vem na minha frente um quadro com um discurso de Fidel Castro, pronunciado em 2 de dezembro de 1976, no Teatro Karl Marx, na sessão solene de instalação da Assembleia Nacional do Poder Popular: “Não há aqui, como no mundo burguês, diferenças entre militares e civis, brancos e negros, homens e mulheres, jovens e velhos, porque todos desfrutamos de igualdade de direitos e deveres. Não há também, por riqueza, diferença entre ricos e pobres, exploradores e explorados, poderosos e humildes, porque a Revolução liquidou o poder político dos burgueses e terratenentes para forjar o Estado dos trabalhadores”.

As caveiras de Fidel, Che, Celia Sanchez, Cienfuegos, Vilma Espin e tantos revolucionários devem estar se revolvendo de indignação em seus túmulos com que os seus sucessores fizeram com o povo habanero na festa dos seus 500 anos. Realmente, será preciso uma nova Revolução para fazer um “para pra acertar” na pátria do socialismo: uma casta privilegiada e identificada por crachás, enquanto o povo - o Estado dos trabalhadores - era barrado no melhor da festa.


O povo cubano foi barrado na festa dos 500 anos

Após esse “discurso” longo, a la Fidel, retorno à narrativa do dia. Primeiro fomos ao Memorial De La Denuncia, em Miramar. Um prédio moderno, inaugurado em 2017, e que expõe os ataques imperialistas sofridos por Cuba desde a Revolução de 1959. Um placar no Memorial mostra que 3.478 cubanos já foram assassinados em defesa de sua pátria.

Depois, visitamos o Museu da Revolução, que está funcionando parcialmente, porque está em reforma, mas onde se tem uma compreensão da luta para tomar o poder das mãos do ditador Fulgêncio Batista e dos Estados Unidos. Anexo ao MR está o Memorial Granma, com o iate do mesmo nome que trouxe, do porto de Tuxpan, no México, os primeiros 82 guerrilheiros que detonaram a Revolução. É, realmente, uma grande epopeia moderna.

Depois, voltamos à Plaza de San Francisco e à Plaza Vieja. Os vendedores de charutos não lhe dão trégua. Fica a dica: se você é expert em charutos, pode se arriscar no mercado negro. Caso contrário, compre em uma “tienda” oficial: é mais seguro. Partimos pra almoçar no Los Nardos, mas a fila era de casa lotérica em Sena acumuladíssima. Ficamos no térreo, no D‘Lirios, que é do mesmo dono e a comida também é muito boa. E não tem erro para chegar lá: Los Nardos e D‘Lirios ficam exatamente na mesma porta, em frente ao Capitólio. Depois da carne, o espírito: uma parada para uma prece na Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora, nas esquinas das calles Brasil e Compostela. Por 5 CUC, acabei cortando o cabelo com Antonio, na Barberia Salón Correo, na Calle Brasil (ou Teniente Rey), onde já apararam suas madeixas, entre outros, o ex-secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. O Príncipe Charles também por lá apareceu.

Fizemos nossa última parada no Meliá Cohiba para pongar na Internet, assistindo antes ao crepúsculo e aos banhos de espuma da ressaca no malecón. Tentamos ainda tomar um sorvete no Coppelia, no Vedado, mas a casa tem folga às segundas-feiras. E se tiver que comprar charutos, faça-o na cidade: no Aeroporto, os preços dobram e não se aceita cartão de crédito.

No mais, é agradecer a essa cidade belíssima e de um povo acolhedor - a exceção, é claro, dos seguranças. Obrigado a Jorge Ferreira, e a seu filho Juan, pela gentileza, paciência e fino trato; a Lili, pela acolhida em sua casa; à Kety Viera, Jorge Ramos e Sarai Cespedes, do Mercado San Jose, pela atenção e carinho; à Dra. Jaqueline e a João pela providencial salvação na madrugada dos 500 anos; a Geni e a Oscar pela presteza no quesito mobilidade; à Tânia e Israel, do El Balcón de Diego, pela boa vizinhança; à Cinthia, pela simpatia no show do Buena Vista Social Club; as gentis telefonistas, na pessoa de Beatriz, do Meliá Cohiba; à Maria Antônia, pelo sorriso fraterno; a Leo, em Varadero, pelos tragos clandestinos; à Grisele Martínez, do Museu Municipal de Guanabacoa, pelas boas histórias; e a Antonio, meu único barbeiro habanero. Obrigado, La Habana!