Escritos

Diário de Havana (uma selfie às pressas com o rei da Espanha)

Felipe VI e Letizia participaram da festa dos 500 anos de Havana

A primeira parte dessa viagem à San Cristóbal de la Habana – Havana, a capital de Cuba - que celebrou, no último mês de novembro, 500 anos de sua fundação - tem a participação especial de um Lada azul royal 1979.
Dia 04

Os passarinhos disputam quem vai lhe acordar na sinfonia matinal. O apartamento onde estamos, em Nuevo Vedado, fica envolto pela mata e às margens do rio Almendares. A sonhada viagem à Santa Clara e à Trinidad está cada vez mais distante. Fomos à Cubacar e, mais uma vez, não havia automóvel disponível. Não se pode reservar, porque eles atendem somente os que foram reservados no exterior. Só se houver desistência.

Então, com toda sua paciência de monge, nosso guia Jorge Ferreira nos levou ao Terminal Rodoviário de Havana. Depois de uma fila de 10 pessoas, a atendente disse que só há um horário de Havana à Santa Clara - desisti de Trinidad - às 9h, na quinta-feira, mas que só tem retorno no dia seguinte, na sexta, quando justamente começam os festejos dos 500 anos em Havana. Acho que Che vai ter que esperar o nosso encontro no céu. Hasta la vista, Comandante! Fica a dica: alugue um carro no Brasil se quiser sair pela Ilha.


Selfie meia-boca com o rei Felipe VI

Fomos então à imponente Catedral de Havana. E ao chegar ao adro, me bato com a grande comitiva dos reis de Espanha - Felipe VI e Letizia - que vieram participar da festa dos 500. Não domino bem as selfies e os seguranças - são iguais em todo lugar - me deram um puxão pela camisa na hora da minha foto entre o casal real. Sobrou, para a história, uma selfie meia-boca com o rei.

Depois, caminhamos pelas praças Vieja e San Francisco, com o seu belíssimo convento e um adro que dá para a baía. Uma visita ao Hotel Ambos Mundos, onde Ernest Hemingway viveu na década de 1930 e escreveu o seu clássico “O Velho e o Mar”. Uma parada para um mojito em La Bodeguita Del Medio para acompanhar os passos de Hemingway em La Habana.

E seguimos pela Calle Obispo, que diariamente repete o seu footing e o seu festival musical em cada esquina de rumba, salsa e bolero. Ao final, daiquiris e um almoço - turísticos e muito caros - em La Floridita, com a sua animação e o seu alto-astral incontestes. Resolvo descer o malecón a pé, até o Meliá Cohiba, mas somente chego ao Hotel Nacional, onde pego o tuc-tuc (cocotaxi), da simpática Mavi, por 5 CUC.

No Meliá, encontro o casal Valci e Rosangela e saímos para uma noite de salsa do Buena Vista Social Club, na Calle Agramonte, Habana Vieja. Realmente, foram os 30 CUC - com direito a três drinques - mais bem empregados nesta aventura pela terra dos irmãos Castro. Com o sorriso simpático de nossa atendente Cinthia, a salsa se transformou em língua única e irmanou gente do Brasil, Chile, Argentina, Polônia, EUA, Costa Rica, México, Portugal, Marrocos, Colômbia, Itália, Uruguai, Inglaterra, Austrália e Croácia. Uma noite mágica para coroar um dia real.

Dia 05

Quinhentos anos desde que foi fundada, Havana resiste, com os seus edifícios de pintura puída, mas impávidos e elegantes. São sóis, ventos e chuvas de quase quatro séculos de domínio espanhol, mais de 50 anos de governos apoiados pelos EUA e 60 anos de socialismo. Do centro antigo até o mar, a cidade está povoada de estátuas de piratas, artistas e heróis rebeldes. É uma urbe impregnada de história.


Havana resiste

E foi para sentir de perto a Revolução Cubana que fomos à Praça da Revolução, com a grande estátua do grande líder cubano e das Américas, José Martí, de autoria de Juan José Sicre - escultor cubano nascido em Matanzas. Dentro do memorial, estão os pensamentos políticos de Martí e as fotos da Revolução de Che, Fidel e Cienfuegos, de 1959.

Por 5 CUC, subimos o obelisco com quase 142 metros, que nos leva, através de um veloz elevador, a um observatório panorâmico de 360 graus de toda a metrópole. San Cristóbal de La Habana é deveras linda! Em frente à praça, está o Teatro Nacional e os edifícios dos ministérios do Interior e das Comunicações, com os relevos de Che Guevara e Camilo Cienfuegos, obras do artista cubano Enrique Ávila, inspiradas em fotografias de Alberto Korda.

Capitólio cubano
Em frente ao Capitólio

Saindo da Praça da Revolução, e impregnados pela belíssima história de Martí, fomos ao Capitólio, que é um prédio imponente, de 1929, e cuja cúpula dourada reluz em qualquer lugar de Havana. Um dos grandes palcos em comemoração ao V Centenário estará armado nas escadarias do Capitólio, restaurado com o apoio da Rússia, que destinou 642 milhões de rublos (US$ 9,6 milhões) para os trabalhos.

Ao lado do Capitólio, o Gran Teatro de La Habana Alicia Alonso, sede oficial da companhia de balé de Cuba. O edifício é esplendoroso. Ainda me disfarcei entre os membros do staff do Balé de São Petersburgo, mas o segurança me atravessou o caminho e barrou-me a entrada. O Alicia só estaria aberto ao público depois dos festejos dos 500.

Em frente ao Capitólio, no D’Lirios, almocei um excelente peixe-agulha ao tomate e basílico, com arroz blanco e frijoles. Cerveja Bucanero pra acompanhar. Como sempre, farta e boa comida por cerca de 10 CUC a conta total - algo em torno de R$ 40. Resolvo descer a pé pelo malecón e paro no Hotel Nacional, que é um dos mais imponentes da cidade, além de hospedar estrelas de primeira grandeza como Frank Sinatra, Caetano Veloso, Bola de Nieve, Sarah Bernard, Peter Frampton, Sarita Montiel, Edith Piaf, Louis Armstrong e Ava Gardner.

Dia 06

Sem rent a car, sem ônibus da Viazul, é mesmo o Lada 1979 do nosso gentleman cicerone Jorge Ferreira que vai nos levar a sair de La Habana pela primeira vez. Atravessamos o Túnel de Havana sob o mar e partimos para o Leste em direção à Guanabacoa e Regla, em busca dos laços espirituais entre o Candomblé da Bahia e a Santería cubana. E são muitos. Cá como lá, foram grandes portos onde atracaram navios negreiros para garantir a mão-de-obra escrava para os engenhos de cana-de-açúcar - somente na região eram 30.

Primeiro, paramos em Guanabacoa - que na língua indígena dos araucos significa “lugar de abundantes águas” - no Museu Municipal, fundado em 1964 e dedicado praticamente à preservação da história da Santería e de outros cultos de origem afro. A Museóloga Grisele Martinez nos guiou pelas diversas salas, em que os ares da espiritualidade ancestral nos fizeram arrepiar algumas vezes diante do panteão de Oxossi, Yemanjá, Yansá, Oxum, Ogum e Exu, entre outros orixá. Há uma variação entre os santos do sincretismo baiano e cubano, mas são basicamente iguais na essência e na origem.

Contudo, a sala que mais me impressionou foi a da Sociedad Abakuá, exclusiva para homens, e que mantém 16 templos somente em Guanabacoa, em um dos raros cultos de origem africana com edifícios semelhantes aos conventos. A Sociedad Abakuá -  originária do Calabar, na África, - tem o El Ireme, ou Diablito, como sua principal divindade, mas utiliza muitos elementos da religião católica, como a cruz, o altar e o ostensório, ao mesmo tempo em que valoriza elementos da natureza, como as árvores.

Saímos de Guanabacoa e chegamos em Regla, separadas por uma ponte e por uma rixa histórica, como as cidades baianas Piritiba e Mundo Novo ou São Félix e Cachoeira. Percorremos as ruas de Regla, avistamos Havana por um outro ângulo - e ela continuava esplendorosa - e fomos fazer uma oração na Igreja dedicada à Virgem negra de Nossa Senhora de Regla. Muitas mães-de-santo estavam orando, já que para se iniciar na Santería é preciso estar batizado na Igreja Católica.

Retornamos à Havana e fomos almoçar no restaurante Los Nardos, em frente ao Capitólio. Recomendo uma imperdível favada - como se fosse a nossa dobradinha - e uma bisteca de porco empanada, à moda uruguaia, que dá para repartir entre três pessoas. E foi justamente o que fizemos em companhia do pernambucano Zeca e da roraimense Mayara, que havíamos conhecido no La Bodeguita Del Medio e que, à noite, estariam de partida para três dias em Miami: do socialismo para o capitalismo selvagem, sem escalas.


Uma parada no concerto de salsa e rumba

Atravessamos a Calle Obispo para um câmbio na Cadeca - agente oficial do Estado cubano para a troca de moedas. E aqui fica a dica: não faça câmbio na rua, com particulares e leve, de preferência, euros ou libras, que são muito mais valorizados que o dólar. Bem pertinho, fomos parar na Plaza de Armas, para assistir a um majestoso concerto de salsa e rumba, executado pelos jovens - entre eles Valdez, um sósia de Bola de Nieve - da Banda Nacional de Conciertos, com belíssimas execuções de “La Bella Criolla”, “Rapsodia Negra”, “Vinales”, “Mini Males” e “Cuba Querida”. Nada como um banho de boa música, la luna leña sob o céu de Havana e o mar jogando espuma sobre o malecón - como num brinde de champanhe aos 500 anos - para fechar o dia.