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Animais que vivem em Salvador: por que sariguês são importantes

Os sariguês estão sendo mortos nas cidades

Foto: pxhere/Creative Commons
Sariguê
Sariguê, um marsupial da mesma família dos cangurus

Como lidar com animais silvestres que invadem o ambiente das nossas casas? Para falar a verdade, somos nós, os seres humanos, os verdadeiros invasores do habitat de muitos animais que habitavam matas e florestas onde hoje estão erguidas as cidades. E isso traz  consequências.

O fato de muitos desses seres ‘disputarem’ espaço conosco, é um sinal de que as espécies estão lutando e se adaptando à nova realidade das suas vidas que foram drasticamente modificadas por causa do processo de urbanização das cidades.

Uma espécie que tem sofrido muito com isso é o gambá, por aqui mais conhecido como sariguê, um marsupial da mesma família dos cangurus, que possui hábitos noturnos e solitários, vive em árvores, é pouco agressivo, mas muito agredido por seres humanos pelo fato de ser visto como um tipo de “parente de rato"

Por envenenamento, atropelamento, pancadas ou ataques de animais de estimação os sariguês estão sendo mortos nas cidades (matar, envenenar, caçar, maltratar um sariguê é crime ambiental). A professora aposentada Margaria Maria Veiga, 86, mora numa rua recuada e próxima à Avenida Garibaldi. Atrás da sua casa há vegetação que sobreviveu ao desmatamento que vem sendo realizado há anos na área para construção de prédios. De vez em quando ela recebe a visita de uma sariguê fêmea, que às vezes tem filhotes na sua bolsa.

A professora reserva para a visitante pedaços de frutas e verduras, que coloca no muro de sua casa. “Eu não entendo a razão de as pessoas maltratarem e até matarem um bicho tão inofensivo quanto o sariguê”, declara ela, que também alimenta os animais silvestres que aparecem por lá, como passarinhos e saguis.

Mas no geral são os alimentos descartados por humanos nas lixeiras que atraem os sariguês. Na natureza nossos gambás se alimentam de frutas, de insetos, lagartixas,  escorpiões e aranhas até de cobras, inclusive serpentes, às quais são imunes ao veneno. Os filhotes mamam na mãe, os marsupiais são mamíferos.  

Pois é, os sariguês ajudam a controlar a população de insetos e animais peçonhentos que são danosos aos seres humanos. Fora isso, lentos e pacíficos, não oferecem perigo, desde que não se tente pegá-los com as mãos. Quando ameaçados ou atacados abrem a boca, rosnam e assopram para intimidar e podem até se fingir de mortos. Também podem exalar um cheiro forte, como meio de defesa.

Na primavera eles aparecem mais, já que é época de acasalamento e reprodução.

Se você se deparar com um destes animais ferido ou preso, ou se vir alguém agredindo o bichinho, pode ligar, em Salvador, para A COPPA PM Ambiental (71) 3116-9151, para a Delegacia de Proteção Ambiental (71) 3676-1132 ou mesmo para a Polícia Militar no (71) 3115-9324.

Yasmin Von CzekusA série de reportagens sobre a interação entre animais silvestres e humanos na cidade - iniciada aqui pelo Leiamais.ba - nasceu de uma conversa com Yasmin Von Czekus, estudante de Medicina Veterinária da Universidade Federal da Bahia, que também trabalha no Hospital Veterinário da UFBA. Yasmin tatuou nas costas uma imagem de sariguê e dedica seus esforços acadêmicos para pesquisar e cuidar dos animais dessa espécie.

Ela é também tutora e requereu o direito de ser fiel depositária de “Doquinha”, uma sariguê resgatada pela Polícia Ambiental, tratada no Hospital da UFBA, onde chegou bem pequena com o olho lesionado. O nome é por causa do fato de ela só ter um olho, ser “doca”, como popularmente são chamadas aqui as pessoas que perdem um olho.

Yasmim conta que Doquinha fica em uma gaiola, durante o dia, e à noite é solta no amplo quintal da casa, onde passeia, mas não consegue subir nas árvores porque também sofreu distrofia muscular.

Com um nível de interação com os humanos parecido com o de um gato, ela também tem suas preferências. Yasmin reclama  que em vez dela, Doquinha gosta mais de seu namorado, também estudante de Veterinária. O LeiaMais.ba bateu um papo om a estudante que desenvolveu uma grande paixão por esses animais e fala da sua experiência com os sariguês e como pretende levar tudo adiante.

LeiaMais.ba: Como foi seu primeiro contato com os sariguês?
Yasmin Von Czekus
: Desde o segundo semestre eu estagio no setor de animais silvestres do Hospital Veterinário e durante o estágio uma tarde, nós recebemos um sariguê trazido pela Polícia Ambiental. Durante a estada dele no estágio pude perceber que ele foi de certa forma negligenciado pelos meus colegas de estágio. Muitos comentavam que era "sujo" ou um "parente do rato". Então surgiu em mim uma vontade muito grande de quebrar esse estereótipo ruim de animais que são tão importantes e estão cada vez mais aparecendo em nossa rotina clínica por causa do desmatamento e da crescente criação de condomínios e prédios em áreas de mata.

TatuagemLM: De que forma os sariguês são importantes no ambiente?
YC
: Bom, além de serem dispersores de sementes, eles se alimentam de insetos, mantendo a população deles contida para que não tenhamos pragas, por exemplo. Também são indicativos importantes de doenças, como os macacos silvestres são da febre amarela. Se existe uma população grande de sariguês infectada, por exemplo, com leishmaniose, significa que a doença está em desequilíbrio na área, ou em situação preocupante.

LM: A construção de condomínios, por exemplo, afeta muito a vida desses animais?
YC
: Sim, infelizmente eles sofrem muito com a entrada dos seres humanos no seu habitat. Se alimentam do nosso lixo então podem comer plásticos ou se ferir em latas, podem ser atropelados, atacados por pets ou até por pessoas mesmo. Infelizmente a gente sabe que por parecerem ratos, as pessoas envenenam, batem e a quantidade de animais nesse estado que recebo no estágio nesse estado é enorme.

LM: Então uma parte importante desse processo é também trabalhar a consciência ambiental dentro do próprio meio acadêmico né?
YC:
 Sim, com certeza. Temos muitos colegas do interior, principalmente na UFBA, que trazem uma cultura de caçar sariguês e até comê-los, e é importante que a gente possa mostrar de forma técnica a importância da preservação desses animais. O viés da necessidade deles como animais marcadores de doenças, por exemplo, ajuda muito quando veem uma necessidade científica para a existência desses animais (sei que não é algo muito bonito de dizer, mas é a forma que consegui de fazer com que eles entendam que os sariguês precisam ser protegidos).

LM: De que forma você compartilha seus conhecimentos sobre a importância dos sariguês?
YC:
 Por enquanto, uso Instagram @yasminvonczekus. Mas estou escrevendo alguns trabalhos acadêmicos sobre sariguês, alguns relatos de caso e  além disso tenho ajudado os grupos de estudos com projetos sociais, idas em colégios onde falo sobre esses animais.

LM: Que projetos são esses?
YC:
 O GEAS (Grupo de Estudos de Animais Selvagens) da Unifacs, além das palestras mais técnicas para estudantes de Veterinária, faz um trabalho de extensão sensacional. Então eles vão em colégios de ensino público e particular falar sobre educação ambiental.

LM: Como você acha que pode ocorrer o equilíbrio disso tudo? Uma cidade em expansão urbana e a preservação de espécies na natureza?
YC:
 Acho que uma forma viável é a criação de áreas de proteção que não pudessem ser desmatadas, o mais "fora" o possível da cidade. Podem ser feitas em forma de parques de visitação ou de trilhas. Também quando houver uma área que precise ter impacto direto, como o caso do BRT, que haja um trabalho de supressão da fauna local, feito por biólogos e veterinários, em que estes retiram os animais do local para reintroduzir numa área de proteção.

Saiba mais
A vida dos gambás

 

Mamífero marsupial, onívoro, habita desde o sul dos EUA até o sul da América do sul. É um dos maiores marsupiais da família dos didelfídeos. Pertence ao gênero Didelphis. "Gambá" vem do tupi gã'bá ou "guaambá",  e significa seio oco, uma referência ao marsúpio, a bolsa ventral onde se encontram as mamas e onde os filhotes vivem durante parte de seu desenvolvimento.   Já sariguê, saruê, sarigueia e saurê procedem do tupi antigo sarigûeîa (sarigûé).

É chamado de mucura na Amazônia, sariguê, saruê ou sarigueia na Bahia, cassaco no Ceará, taibu, tacaca, ticaca em São Paulo e Minas Gerais, timbu na Paraíba e em Pernambuco, micurê no Mato Grosso e no Paraguais, gambá na Região Sul do Brasil e opossum nos EUA.

Mede geralmente 45 centímetros de comprimento, sem contar a cauda, que pode ter mais 40  centímetros e se enrolar nas árvores. Pode pesar até 1,6kg e tem duas camadas de pelos, uma interna, mais macia, e outra externa com longos pelos de cor preta ou cinza. As patas são curtas, com cinco dedos, garras, e têm uma corpo parecido com o de um rato. Tem ainda  uma glândula que exala odor desagradável na região do ânus.

Podem reproduzir três vezes ao ano, dando à luz de dez a 20 filhotes em cada gestação, que dura de 12 a 14 dias. Como com outros marsupiais, ao invés de nascerem filhotes, nascem embriões com cerca de um centímetro de comprimento, que se dirigem para a bolsa onde permanecem por mais quatro meses e terminam de se desenvolver. Ainda pequenos não são capazes de viver sozinhos, então são transportados pela mãe em seu dorso.

Alguns gambás são imunes ao veneno de escorpiões e de serpentes, incluindo as jararacas, cascavéis e corais. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, isolaram justamente a proteína que existe no organismo do sariguê e que o torna resistente ao veneno de cobras do gênero Bothrops, como a jararaca e a jararacuçu, responsáveis por cerca de 90% das picadas de serpente no Brasil. Segundo os pesquisadores, a proteína bloqueia efeitos locais do veneno, como hemorragia e edema, tarefa em que os anti-soros existentes não são tão eficientes.