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Conheça as heroínas do 2 de Julho

Lugar de mulher é também no 2 de Julho

Foto: Ieda Tourinho
Guerreiras da Independência, representadas em 2015
Guerreiras da Independência, representadas em 2015

“Nunca mais, nunca mais o despotismo regerá, regerá nossas ações. Com tiranos não combinam brasileiros, brasileiros corações”.

Quando cantamos o Hino da Bahia ou Hino do Dois de Julho, seja ao celebrarmos o principal acontecimento histórico que nos tornou independente de Portugal, seja ao cantarmos antes das partidas do Esporte Clube Bahia na Fonte Nova, não paramos para pensar muitas vezes na importância da participação das mulheres na Independência da Bahia.

Maria Quitéria e Maria Felipa são algumas das guerreiras das lutas da libertação do país sob o jugo português, consolidado em Dois de Julho de 1823. 

Na verdade, elas não tiveram uma mera participação na História do Brasil, uma vez que foram precursoras da inserção das mulheres no Exército, espaço eminentemente masculino no século XIX.

“No primeiro momento, Maria Quitéria foi aceita enquanto homem, através do disfarce do ‘Soldado Medeiros’. Mesmo sendo mulher, ela é aceita e luta nas históricas batalhas da Ilha de Maré, Pituba, Itapuã e da foz do rio Paraguaçu (situada na entrada da Baía de Todos os Santos). É importante compreender que o exército do Século XIX era um espaço dos homens, sem qualquer possibilidade de intervenção feminina.”, diz a historiadora e pesquisadora Luana Soares.

Luana ressalta que, no século XIX, cabia às mulheres brancas, cuidar da vida familiar e dos afazeres domésticos.

“A vida das mulheres brancas do período estava destinada a manutenção da vida privada e ir para a guerra se constituía em um ato político de coragem, entendido como contrário a “natureza feminina”. Nesse sentido, ao se juntar ao exército, Maria Quitéria quebrou com o estereótipo da fragilidade feminina e foi a primeira mulher a integrar as forças armadas no Brasil Ouso dizer, inclusive que Maria Quitéria inspirou outras mulheres a tentar o serviço militar. Entretanto, A entrada oficial de mulheres nas forças armadas, com respaldo legal, apenas irá se dar em 1944, incorporadas para cumprir a função de enfermeiras durante a Segunda Guerra Mundial”, explica.

Maria Felipa foi outra mulher que desempenhou um papel crucial nas lutas de Independência da Bahia. Luana Soares destaca que Maria Felipa é um símbolo crucial para se entender o porquê da participação de negros e indígenas nas lutas pela Independência.

“Ela liderou um grupo de resistência aos portugueses [composto por 40 mulheres], fortificou praias, organizou envio de mantimentos para o Recôncavo, organizou a queima de embarcações. Um detalhe interessante é que, embora as lutas tivessem terminado, comanda um ataque, juntamente com Joana Soaleira, Brígida do Vale e Marcolina ao português Araújo Mendes e surram o vigia Guimarães das Uvas, demonstrando que as insatisfações com o regime permaneciam. A heroína é um símbolo recente resgatado, a imagem de um empoderamento negro e feminino a que se reporta”, reflete.

A idealizadora do clube de leitura Passos Entre Linhas, Lorena Ribeiro, destaca que, quanto mais se sabe da história dessas mulheres, como Maria Felipa fortalecer a representatividade negra. “Eu acredito que saber da história delas me faz sentir inspirada para lutar cada vez mais e se as jovens conhecessem desde o Ensino Fundamental, teriam mais força ainda para fazer o que elas quiserem. A inspiração em Maria Felipa não terá limites para seguirem os caminhos delas.”


Lorena Ribeiro afirma que as jovens devem conhecer a história das mulheres para consciência de luta - Foto: Ieda Tourinho

Quando se menciona a participação das negras, é impossível não se pensar na representação da Cabocla no cortejo da Lapinha ao Campo Grande. Entretanto, a representação está dela mais associada à participação popular nas lutas e ao encantamento da imagem

“A real popularização da Cabocla está ligada a participação de negros e indígenas nas lutas, mais até do que a força feminina. Grande parte dos negros e indígenas que se alistaram na guerra sonhavam com a sua alforria, entretanto, encerrado o dilema nacional, estes foram mantidos em cárcere, já que a escravidão era parte do poderio econômico das elites baianas. Um ponto importante sobre a “fé” na Cabocla, é que ela foi carregada durante as comemorações pela Abolição em 1888, como se essa emancipação também fosse uma “benção” garantida pelo símbolo e também como sinal de irmandade com a população indígena”, esclarece Luana.


Luana Soares ressalta a participação decisiva de Maria Felipa - Foto: Arquivo pessoal

Joana Angélica - No início do século XIX, a religiosa baiana foi protagonista de um dos episódios mais dramáticos nas batalhas pela independência do Brasil. Ela morreu defendendo o Convento da Lapa, em Salvador, contra o ataque dos soldados portugueses. 

Existem duas versões contraditórias sobre o episódio do ataque ao Convento da Lapa.

Para o historiador brasileiro Bernardino José de Souza, a versão portuguesa, patrocinada principalmente pelo historiador português José d'Arriaga, não tem sustentação em documentos. Segundo a história lusitana, agentes do partido reacionário (pró-Independência) havia se escondido no convento e atirado nos soldados de dentro do edifício. 

Já os historiadores brasileiros afirmam que as tropas portuguesas estavam entrando em diversos edifícios, praticando roubos e até mortes, com o pretexto de que tiros haviam saindo de dentro de determinado local; assim como acontecera com o convento. 

O jornal Diário da Bahia publicou em sua edição do dia 2 de julho de 1936, uma reportagem completa sobre o ataque ao convento e o martírio da Sóror. Nela consta a descrição da crise política e excessos cometidos pelos soldados lusitanos.

"A cidade surpreende-se com a designação de Madeira de Mello para o comando das Armas da Província. Vitoriosos, os comandados de Madeira apossam-se da cidade (…) ódio e vingança. Incêndios e saques. Selvagerias e homicídios."


Joana Angélica

Um erro cronológico sobre o acontecimento permeia muitos dos livros que tratam do assunto. É comum encontrar que a data do ataque corresponde ao dia 19 de fevereiro de 1822. No entanto, de acordo com o termo de morte da Madre Joana Angélica, o fato ocorreu entre 11 horas e meio-dia de 20 de fevereiro de 1822.

Outra concepção equivocada é de que o capelão do convento, Daniel da Silva Lisboa, teria sido assassinado pelos soldados portugueses no mesmo episódio. Mas como prova o atestado de óbito, contido no Livro de óbitos da Freguesia de S. Pedro, ano de 1938, fls. 232, o Padre Daniel Nunes da Silva Lisbôa morreu em 1833.

Sólida construção colonial, ainda hoje existente na capital baiana, o Convento da Lapa compõe-se de uma clausura, cuja principal entrada é guarnecida por um portão de ferro.

Um grupo de soldados tentava arrombar o portão enquanto Joana Angélica ordenava às irmãs fugissem pelos fundos. A fim de proteger a clausura e integridade das irmãs, a Sóror se colocou como último obstáculo entre o convento e a tropa lusitana. A porta testemunha do sacrifício da freira segue sendo a mesma atacada pelos soldados até hoje.

Conta a tradição, reproduzida por diversos historiadores, que então exclamou:

“Para trás, bandidos. Respeitem a casa de Deus. Recuai, só penetrareis nesta casa passando por sobre o meu cadáver.”

No entanto, uma extensa pesquisa realizada em inúmeros arquivos pelo país, conduzida pela pesquisadora Antônia da Silva Santos durante dez anos, nenhum documento prova que a Sóror disse isso de fato.