“Desista, mãe, ele vai morrer”. João Pedro Silva, então com seis anos de idade, já completava oito horas de convulsões, sem conseguir deglutir. Considerado cego, surdo e mudo pelos médicos, foi dado como um caso sem jeito por alguns profissionais, devidamente desobedecidos por Elaine Cristina da Silva, mãe do garoto. João Pedro sofre de Hemimegalencefalia associada à eplepsia refratária, doença neurológica caracterizada pela constância de convulsões de difícil controle, que causam atraso no desenvolvimento psicomotor. “A crise aconteceu quando não consegui encontrar o Sabril (um dos medicamentos que era consumido pela criança) nem em estoques particulares nem nos do estado. Ele convulsionou o mês inteiro e perdeu o movimento de um dos braços”, lembra Elaine. O incidente foi o estopim da inviabilidade da rotina de remédios com efeitos colaterais danosos. Foi quando Elaine deixou o preconceito de lado e começou uma verdadeira cruzada para viabilizar o tratamento com pasta de maconha para o filho. Com o medicamento natural, o garoto diminuiu uma média de 24 convulsões por dia, para cerca de três por semana.
“Se você for ler a bula do Sabril chora, porque a cegueira está entre os efeitos colaterais. Ele ainda tomava o Rivotril e o Depakene, responsável por uma anemia sem fim, que fazia ele precisar tomar vitamina C e Combiron. Acho que a grande quantidade de remédios fez ele ganhar um problema no fígado”, lamenta a mãe. Convivendo com o filho quase que permanentemente dopado e sonolento e sem médicos que apresentassem alternativas aos agressivos remédios, Elaine foi à luta em busca de informações. “Pela internet, cheguei a uma rede de mães que faziam uso da cannabis. Uma delas, falou de mim para um médico do Instituto do Cérebro, no Rio de Janeiro. Ele respondeu nos convidando para ir lá”, conta.
Desempregada, Elaine é mãe solo desde que se separou do pai do garoto, que só o vê nos finais de semana e contribui financeiramente com a pensão alimentícia, determinada por lei. Além dela, João Pedro e sua mãe contam apenas com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), quantidade no valor de um salário mínimo cedida pelo estado para pessoas que precisam buscar em outros lugares tratamentos que não são oferecidos localmente. Devido à enfermidade do filho, que precisa passar o dia acamado, Elaine não poderia conciliar suas demandas à um emprego formal, podendo apenas conseguir alguma renda extra com bicos. “Para trabalhar fora, eu precisaria pagar uma cuidadora para João Pedro, o que não seria financeiramente possível. Só com medicamentos, gastamos metade do nosso dinheiro”, afirma.
Assim, ela precisou organizar uma “vaquinha” virtual em apenas uma semana, com o objetivo de arrecadar os valores das duas passagens para o Rio de Janeiro. Com muita perseverança, conseguiu, acomodou João Pedro em uma cadeira de rodas e voou rumo à esperança. “Fomos na cara e na coragem, ficamos na casa de pessoas que se sensibilizaram com a situação e nos ajudaram. Assim que cheguei lá, o médico olhou para a cabeça de João Pedro e deu o diagnóstico, os exames confirmaram depois. Se tivéssemos descoberto até os seis meses dele, teríamos feito a cirurgia antes e ele não teria sofrido com todas as consequências da doença”, coloca Eliane. Em um apenas um mês, João Pedro passou por três cirurgias.
A partir da ajuda de outras mulheres, Eliane passou a conciliar a cirurgia ao uso da cannabis. “Demorei a dar porque não encontrei informações sobre a dosagem para crianças, fiquei com medo. Mas uma amiga, mãe de uma criança com Síndrome de West, começou a pesquisar e mandar informações para mim e para outras”, comenta Elaine. Posteriormente, a dosagem ideal se mostrou ser a de apenas duas gotas por três vezes ao dia, de uma substância artesanal e regularizada, trazida do sul do país. “Existem pessoas que respondem devagar à cannabis, mas com João Pedro foi muito rápido. Antes ele vivia no mundinho dele, não interagia. O menino passou a olhar no meu olho, tive certeza que ele enxergava e ouvia”, comemora.
Além da cannabis e da cirurgia, a fisioterapia explica o atual bem-estar do garoto em comparação ao período que compreendeu seu primeiros anos de vida. A fisioterapeuta Giovanete Fontes, conta que o acompanha desde que ele era um bebê. “Eu vejo o paciente como um todo, a gente tem que ter um olhar humanizado, foi muito difícil trabalhar com João, que foi um bebê muito debilitado. Hoje, nosso maior objetivo é dar qualidade de vida para ele, fazer com que ele possa ficar sentado, coisa que já vem conseguindo, para melhorar seu processo de alimentação”, coloca a profissional. Com sessões diárias de cerca de 40 minutos, a fisioterapia o acompanhará durante toda a sua vida. Pacientemente, a fisioterapeuta estimula o movimento de pernas, braços e dedos. A boa quantidade de alongamentos impede que os membros sofram deformações. “Depois da cirurgia, os médicos não descartam a possibilidade de um dia ele voltar a andar e nós temos fé. A gente aplaude cada evolução de João, hoje ele tem uma qualidade de vida que não tinha”, frisa Giovanete.
Redes costuradas no afeto
Para Ingrid Farias, integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), houve uma mudança de perspectiva da opinião pública sobre a legalização da maconha e ela se deve à demanda do uso medicinal. “Existe uma rede que foi criada em torno do direito ao acesso do uso medicinal da maconha, mobilizada pelas mulheres periféricas. Elas pautaram o acesso ao óleo numa perspectiva de seus recortes de classe”, explica. De acordo com a ativista, é impossível para mães, geralmente desempregadas, arcar com valores próximos a R$ 3 mil para adquirir óleo, importado de outros países, equivalente a um mês de tratamento. “Essas mulheres começaram a criar redes, onde os óleos e os conhecimentos são compartilhados. São mulheres que deixaram de usar remédios que trazem sequelas muito graves para acrescentar a maconha à rotina dos filhos”, conclui.
Atualmente, João Pedro faz uso de outros três remédios: o Trileptal, o Nitrazepan e o Topiramato, todos eles com uma dosagem a menos, graças à cannabis. “Agora eu ajudo outras mães como posso, compartilhando o que sei sobre a dosagem de João Pedro, mas cada caso é um caso. Eu já fui preconceituosa com a maconha, porque o desconhecido é algo assustador, mas quando a gente conhece vê que não é uma droga, mas um fitoterápico”, comenta Elaine. Comumente questionada por médicos sobre uma possível experiência na área de saúde, ela completa: “O conselho que dou a outras mães de crianças com epilepsia é que sejam mais cuidadosas, se informem, interroguem, perguntem, briguem e não aceitem qualquer coisa que médico fala. Eles não são deuses. Ser mãe é maravilhoso, principalmente mãe de João Pedro”, finaliza.