O movimento Law in Literature, que teve como percursor o jurista norte-americano John Henry Wigmore, propôs analisar textos literários com temáticas jurídicas, em 1908.
No Brasil, o jurista e político baiano Aloysio de Carvalho iniciou os estudos sobre as investigações jurídicas na obra de Machado de Assis, em 1934, sendo considerado um percursor desse movimento que ajuda a compreender a atividade jurídica, como humana, sendo imprescindível a busca da retidão dos propósitos, da consciência.
O texto desta semana da coluna #Direito com #Literatura buscou verificar as relações entre o conto “O Espelho” de Machado de Assis, publicado no livro “Papéis Avulsos” de 1882, em que ele adverte reunir “meros contos” e outros “que o não são”.
Para a elaboração destas considerações, realizou-se a leitura do conto no livro Machado de Assis. Conto, da coleção Nossos Clássicos, publicado em 1997, pela editora Agir.
No conto “O Espelho” tem-se uma narrativa alegórica, em que o personagem Jacobina, juntamente com outros quatro “cavalheiros” discutem sobre questões de “alta transcendência”. Jacobina mantinha-se calado até que um dia, ao discutir sobre a natureza da alma, falou por cerca de trinta a quarenta minutos. E das palavras do personagem Jacobina pode-se refletir sobre a hermenêutica jurídica, que é a ciência que contribui com a interpretação das normas que devem ser aplicadas em sintonia com o sistema jurídico vigente, com as leis da época.
A palavra hermenêutica foi utilizada inicialmente pelo filósofo Platão, sendo, atualmente uma disciplina de interpretação das normas que ressalta os princípios observando-se as leis do pensamento e da linguagem. O vocábulo é oriundo do grego hermeneuein, relacionado ao Deus Hermes, filho de Zeus, encarregado de levar a mensagem dos deuses do Olimpo aos homens.
Quando Jacobina diz que “cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...” (ASSIS, 1997, p32-p33), traz uma discussão que é importante para compreender a hermenêutica jurídica, pois a norma e sua interpretação dependem do homem, do que está “dentro” do homem, suas experiências e vivências, assim como dependem da Constituição, da realidade, do que está “fora”.
Os negócios processuais, típicos e atípicos, devem ser interpretados, por exemplo, de acordo com as normas gerais previstas no Código Civil, que são importantes para a interpretação de qualquer negócio jurídico (DIDIER, 2016, p.397-398).
Observa-se no Código Civil, art 112, que se atenderá mais à intenção das declarações de vontade do que ao sentido literal da linguagem, já no artigo 113, explicita-se a interpretação de qualquer negócio jurídico conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. O que seria a boa-fé?
Em direito, trata-se de um princípio processual ou um subprincípio do devido processo legal, que precisa ser cooperativo ou leal. É como adentrar na natureza da alma humana, como propôs o personagem Jacobina, no conto “O Espelho” de Machado de Assis, a alma exterior seria os indícios objetivos e externos, a realidade, as leis, sendo que “Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...”, “muda de natureza e de estado”, e Jacobina conta como ser chamado de Alferes pela tia Marcolina, num determinado momento, mesmo ao ganhar um espelho grande, pelo fato de estar tão atônito, envolvido com as condecorações externas, com o título que lhe atribuíram de alferes, ele não olhava para o espelho enquanto estivera sozinho, esperando o retorno da tia Marcolina que foi visitar uma filha que adoecera.
Para Jacobina, “o alferes eliminou o homem”, mas quando finalmente, ele olhou o espelho, quando ficou sozinho, “Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro.” E ele olhava-se no espelho com a roupa de alferes, “lendo, olhando, meditando...” e depois de duas, três horas, despia-se novamente...
O esforço hermenêutico de interpretação de uma norma, de um negócio jurídico deve observar essa natureza humana fundamentada tanto no externo quanto nas intenções, como afirmou Miguel Reale, no livro Lições Preliminares de Direito, e o intérprete do Direito “não fica preso ao texto, como o historiador aos fatos passados, e tem mesmo mais liberdade do que o pianista diante da partitura” (REALE, 2009, p.292), e o intérprete pode dar à lei uma significação imprevista, diferente da esperada pelo legislador, correlacionando-a com outros dispositivos, observando-se inclusive a boa fé como pressuposto da conduta jurídica, o intérprete deve despir-se e olhar no espelho com todos os imperativos que a função exige, observando tanto as partes que compõem a lei, determinado processo ou a norma, os aspectos externos, quanto buscar compreender a natureza humana das partes, das pessoas envolvidas, inclusive o próprio intérprete e não permitir assim que a função, a toga, ou qualquer vestimenta, eliminem o caráter humano que essa interpretação impõe.
Esse movimento de olhar dentro e fora, o todo e as partes deve ser feito de forma responsável, o que implica “responder , voluntária, consciente e cientemente, pelos próprios atos e obras, assim que a necessidade exigir e a razão justificar para a manutenção do equilíbrio dinâmico do Universo...”(BARRETO, 2009, p.87).
O recurso que se deve usar para interpretar um negócio jurídico, uma norma ou lei, assim, é a consciência, que alimenta a alma de humanidade e não permite que um cargo, uma farda, um instrumento de poder retire o humano, a busca da verdade, da coerência que resulta em justiça das ações sejam jurídicas ou não, e desta forma, a interpretação, o exercício da hermenêutica jurídica se realiza com retidão de propósitos.
Bibliografia:
BARRETO, Maribel. Os Ditames da Consciência. Salvador, Salthyarte, 2009.
ASSIS, Machado. Conto. Org. Eugenio Gomes. Rio de Janeiro, Agir, 1997.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Ed ajustada ao Novo Código Civil. São Paulo, Saraiva, 2002.
DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18º ed. Salvador, ed Juspodivm, 2016.