Antoniella Devanier

Violação dos direitos da mulher, discutida por Clarice Lispector


Clarice Lispector - Foto: Arquivo Nacional

O texto desta semana da coluna #Direito com #Literatura trata do Direito de Família, observando-se o conto “Amor” de Clarice Lispector, que foi escrito em 1949 e publicado inicialmente no livro Laços de Família, em 1960.

O conto “Amor” foi publicado também, posteriormente, no livro Clarice na Cabeceira, pela editora Rocco em 2009, com uma seleção de contos realizada por um grupo de artistas e escritores apaixonados por Clarice Lispector como Maria Bethânia, Luís Fernando Veríssimo e Marina Colasanti.

O conto “Amor” foi escolhido por Afonso Romano de Sant’Anna, e narra a vida da personagem Ana e a violação aos direitos fundamentais que a mulher vivia, com leis que a sufocavam, e a tentativa de uma evolução abreviada ressurge, na narrativa, por intermédio de uma busca incessante de autoconhecimento e, assim, de despertar da consciência.

Esse despertar da consciência que deve começar desde o início, na infância, como bem sabe os professores da escola Ananda, situada em Itapoan, onde as crianças já meditam diariamente em busca do autoconhecimento, mas que no caso do conto, a personagem revelou enquanto adulta ao encontrar um cego na rua.

Logo no início do conto, entretanto, Ana afirma que descobriu que “sem a felicidade se vivia” ( LISPECTOR, 2009, p.28). O papel da mulher nos anos 60 e a relação com o Direito, ao verificar as leis da época, tornam-se implícitas na narrativa, quando “Olhando os móveis limpos, seu coração apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto- ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido” (LISPECTOR, 009, p.29).

Em tempos de escola sem partido, terão que retirar das escolas, além dos livros de Paulo Freire, os livros de Clarice Lispector, pois ela transmite toda uma discussão sobre gênero e ideologias, numa busca de autoconhecimento e afirmação do lugar da mulher no mundo. A própria Clarice dizia “Cursei a Faculdade de Direito porque desejava tentar reformar o mundo...”.

 
Cursei a Faculdade de Direito porque desejava tentar reformar o mundo...
-- Clarice Lispector

Clarice ingressou no curso de Direito, em 1939, e quando publicou o conto “Amor”, em 1960, já tinha certo conhecimento sobre Direito de Família, leis e ordenamento jurídico, apesar de explicitar, em suas entrevistas, uma afinidade com o Direito Penal.

Tanto o Direito quanto a Literatura trabalham com a palavra e as relações humanas e esse estudo, em conjunto, surgiu nos EUA e na Europa, com os percursores John Wigmore e Benjamin Cardoso, no início do século XX. Em relação ao Direito de Família, o conto “Amor” de Clarice Lispector descortina o papel da mulher no casamento: “ E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera” (LISPECTOR, 2009, P.29).

Na época, estava em vigor o Código Civil de 1916, lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916, que tinha um texto muito diferente do atual e já no artigo 2º do Capítulo Pessoas Naturais informava  “Art. 2º Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil” que foi alterado em 2002 para Capítulo Da Personalidade e Da Capacidade  “Art. 1º  Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.

O homem era considerado o chefe do lar, segundo o artigo 233, do Código Civil de 1916, sendo família apenas o grupo formado pelo matrimônio e com laços sanguíneos, sendo que não era possível a dissolução do casamento, pois não havia divórcio, apenas desquite.  O Casamento era apenas pelo regime da comunhão universal e filhos fora do casamento não eram reconhecidos como filhos. A lei do Divórcio, lei 6515, foi promulgada apenas em1977.

No artigo 233, do Código Civil de 1916, ao homem também cabia “ a representação legal da família” e o “ direito de fixar ou mudar o domicílio da família” e o papel da mulher estava estabelecido em lei, pois, segundo artigo 6º do Código Civil de 1916, as mulheres casadas eram consideradas incapazes relativamente a certos atos, enquanto subsistisse a sociedade conjugal, tendo que pedir autorização ao marido, por exemplo, para exercer uma profissão.

O encontro com o cego é o momento de despertar da consciência da personagem Ana, casada e submissa ao contexto da sua época, “ Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada...” (LISPECTOR, 2009, p. 30).

Maribel Barreto, no livro Ensaios sobre a Consciência, publicado em 2012, pela editora Sathyart, esclarece a importância desse momento epifânico de despertar da consciência que possibilita à pessoa o encontro com outras realidades desconhecidas, “ favorecendo-nos agir incessantemente para achá-las, como que a escavarmos a terra o mais profundamente possível; a voarmos o mais alto possível” (BARRETO, 2012, p.17).

E Clarice narra o encontro com a crise que é olhar profundamente sobre a realidade : “ O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas” (LISPECTOR, 2009, p.31). A personagem Ana acabou passando do ponto de parada para sua casa, dentro do bonde , e parou no Jardim Botânico, e num determinado momento questiona : “ De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?”  e conclui “ Tudo era estranho, suave demais, grande demais” ( LISPECTOR, 2009, p. 33).

A finalidade interna de favorecer o Ser, conforme descreve Maribel Barreto, afastando-se da tendência de viver na superficialidade, “visando fins externos, que só favorecem o ter, e os problemas que lhe são afeitos” (BARRETO, 2012, p.18) torna-se evidente na narrativa do conto “Amor” de Clarice Lispector: “ Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores” (LISPECTOR, 2009, p.34).

O processo de busca do autoconhecimento numa realidade opressora para a mulher em que não se podia cogitar uma separação judicial, mesmo se o Amor não imperasse entre o casal, e não permitia, pelo menos externamente, a liberdade de escolha, mostra-se permeado de contrastes na narrativa da trajetória da personagem do conto:  “Ana mais adivinhava que sentia seu cheiro adocicado...O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno” (LISPECTOR, 2009, p. 34). 

Após a experiência epifânica de Ana, a realidade já não se mostrava tão verdadeira quanto a sua essência, quando retorna para casa, abre a maçaneta, e, “por um instante a vida sadia que levava até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver”... “ A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha...” (LISPECTOR, 2009, P.35). Ana olha para os filhos que ela ama. Na época, conforme código civil , de 1916:

“Art. 326 - Sendo o desquite judicial, ficarão os filhos menores com o conjugue inocente.

§ 1º - Se ambos forem culpados, a mãe terá direito de conservar em sua companhia as filhas, enquanto menores, e os filhos até a idade de seis anos.

§ 2º - Os filhos maiores de seis anos serão entregues à guarda do pai.”

A narrativa do conto prossegue “ Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra, E não havia como não olhá-la.” e revela sob o tom do questionamento: “ De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver” (LISPECTOR, 2009, p.35).

Ana descobre que pertencia à parte forte do mundo, mas ao invés de vangloriar-se diz que o cego a levou para o pior dela mesma e conclui “ Ah, era mais fácil ser um santo do que uma pessoa!” (LISPECTOR, 2009, p.36). Observando essa frase em termos de consciência como “movimento interno específico gerado pelo movimento da atividade humana” (BARRETO, 2012, p. 23), ser uma pessoa, ou seja um ser humano, no contexto em que as leis legitimam a proibição à liberdade de ser, como era o caso das mulheres e das condições do Casamento até 1977 ou mais amplamente, até 1988, com a Constituição, hoje vigente, não era uma tarefa fácil e exercida em seu estado natural.

E Ana segue sua trajetória, seu destino, mas o encontro com o cego foi um renascimento pois mesmo naquela realidade, ela passou a se autoconhecer: “ Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão...”.

Ela amava o cego, “No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala” e continuava os afazeres domésticos, “apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom” e sobre a família que rodeava a mesa, o narrador descreve: “ Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos.”, enquanto isso, “Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.” e ficou questionando: “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago.” (LISPECTOR, 2009, p.37).

E o marido restaura o cotidiano que não poderia ser diferente por completo e ele “parecia cansado, com olheiras” e naquela casa, “como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia”. (LISPECTOR, 2009, p.38).

Bibliografia:

BARRETO, Maribel. Ensaios sobre consciência. Salvador: Sathyarte, 2012.

BRASIL. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L3071.htm>. Acesso em 30 de outubro de 2018.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 5: Direito de Família. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

LISPECTOR, Clarice. Clarice na cabeceira. Organização de Teresa Monteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.