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"Cadê meu celular, eu vou ligar pro 180"

Pesquisa revela que 503 mulheres são agredidas fisicamente, a cada hora, no Brasil

"Cadê meu celular, eu vou ligar pro 180", canta Elza Soares, com sua voz rouca e inconfundível, nos primeiros segundos da música Maria da Vila Matilde. O número, presente nos versos da canção, pertence a Central de Atendimento à Mulher, serviço que atende denúncias de agressões contra mulheres e que, só em 2015, recebeu 179 relatos de atos de violência por dia, segundo dados do Governo Federal.

Para engrossar as estatísticas uma pesquisa feita pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança e divulgada no início de 2017, revelou que 503 mulheres são agredidas fisicamente, a cada hora, no Brasil.

Esses números se tornam ainda mais importantes hoje (25), Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, e servem como alerta para a população a respeito de uma realidade que machuca, mata e que por muitas vezes acontece dentro das casas das vítimas.

Um silêncio de milhões

A violência contra a mulher, infelizmente, não é nenhuma novidade. Só no último ano, uma em cada três mulheres brasileiras sofreu algum tipo de violência em casa ou na rua. Agressões verbais, físicas e assédio são algumas das situações que acabam fazendo parte do dia a dia das vítimas.

Entre as entrevistadas para a pesquisa do Datafolha, por exemplo, 22% afirmou já  ter sofrido alguma ofensa verbal no ano passado, um percentual que contabiliza cerca de 12 milhões de mulheres em todo o território nacional. 

Quando fala-se de assédio os números são ainda maiores. No país, 40% das mulheres que participaram da análise diz ter sido assediada, entre situações que envolviam comentários desrespeitosos na rua (36%), assédio físico em transporte público (10,4%) e até mesmo beijos sem consentimento (5%). A maioria das vítimas têm entre 16 e 24 anos, sendo as mulheres negras as que representam o maior percentual de agressões, tanto físicas quanto verbais. 

Porém, mesmo com os números gritantes apontando as situações de violência, o percentual de mulheres que tomam alguma providência após a agressão é de apenas 11%. Na maioria dos casos, mais precisamente em 52% deles, as vítimas se calam e muitas vezes voltam ao ciclo de agressão.

Em briga de marido e mulher se mete a colher, sim!

Mulheres que são vítimas da violência doméstica e familiar muitas vezes sofrem em silêncio por não terem informações sobre como conseguir ajuda. “Elas não denunciam porque a delegacia é um ambiente muito hostil. Se na cidade em que vivem não tiver uma delegacia da mulher é ainda pior.

A vítima acaba indo em uma delegacia normal em que sempre vão duvidar da palavra dela, questionar porque ela apanhou ou se ela não fez alguma coisa para merecer aquele tapa ou empurrão”, explica Renata Albertim, uma das criadoras do aplicativo Mete a Colher, iniciativa feita em 2016, e que já ajudou mais de 800 mulheres a saírem de relações abusivas.

“É natural que elas tenham uma certa resistência. Por isso que criamos essa rede, para fortalecer essa mulher até quando ela precisar fazer uma denúncia legal”, explica Renata. 

Em relações abusivas existem pelo menos três fases principais de agressão: o aumento da tensão, o ato de violência e o arrependimento, que vem próximo ao comportamento carinhoso do parceiro, quando o vínculo psicológico e a vontade de acreditar na mudança do outro volta a ser construído, até o próximo ataque.

"A mulher que sofre a agressão está em uma situação de medo, de vergonha, em que ela se vê tão envolvida que não consegue achar uma solução", afirma Renata, garantindo que tão importante quanto denunciar é dar apoio para que a mulher não se sinta sozinha em uma situação de risco.

“Muitas mulheres só precisam desabafar, saber que têm pessoas com quem elas podem falar. Já tivemos mensagens de mulheres que viram nossas postagens e conseguiram identificar que estavam em relacionamentos abusivos e sair deles”, completa.

Violência e recorte racial

Não há como falar de violência contra o gênero feminino sem traçar um recorte racial. Apesar de mostrar que o número de mortes de mulheres brancas caiu 9,8%, entre 2003 e 2013, o Mapa da Violência de 2015, apontou um aumento de 54,2% nos homicídios de mulheres negras, no mesmo período, passando de 1.864 para 2.875 vítimas.

Os índices de desigualdade assustam não apenas pela quantidade de feminicídios, mas por sua crescente. Em 2003, morriam assassinadas 22,9% mais negras do que brancas, em 2012 esse percentual chegou a 77,1%, tendo uma leve queda no ano seguinte, para 66,7%.

Apesar da região Nordeste concentrar o maior número de assassinatos, são os estados do Espírito Santo, Acre e Goiás, unitariamente, os que possuem os maiores índices de homicídio de mulheres negras, com taxas acima de 10 por 100 mil habitantes.  

A importância da denúncia

Parece óbvio dizer que se a mulher sofre alguma agressão o passo mais importante é ir na delegacia realizar uma denúncia, mas não é. É difícil para uma mulher em situação de risco criar coragem para denunciar, justamente porque dificilmente esse tema é levantado em seus ciclos sociais.

“Muitas mulheres não sabem que existe uma rede de enfrentamento contra a violência contra a mulher. Desconhecem que existe 180, que ao sofrer violência psicológica elas podem fazer uma denúncia e não precisam de provas físicas daquilo, que a palavra dela na delegacia tem que ser a última palavra”, esclarece Renata Amorim.

“Geralmente o feminicídio ocorre depois que a relação acaba. O homem tende a achar que agora que acabou ele não tem nada a perder e se ele não tem nada a perder ele pode tirar a vida dela”, conta a criadora do aplicativo, e completa “acontece muito de ameaças de morte, de homem dizer que vai ficar com o filho, de dizer que vai chegar no trabalho da mulher e humilhá-la. No Mete a Colher a gente estimula a denúncia principalmente quando essa mulher está sofrendo risco de morte. Informamos que ela tem que ir de fato fazer a denúncia porque é a vida dela. Podendo denunciar tanto pelo 180 quanto ir na delegacia da mulher, com duas testemunhas, e pedir a medida protetiva para que não sofra nenhum dano maior, inclusive perder a vida”, afirma. 

METE A COLHER 

Criado em 2016, por nove mulheres, em um evento de startups o Mete a Colher, possui mais de 1.500 mulheres cadastradas. O aplicativo é restrito para mulheres e suas usuárias não apenas procuram ajuda, mas podem oferecer serviços jurídicos, oferecer cursos e empregos, além de apoio emocional. Atualmente o aplicativo está disponível apenas para celulares Android.