O belo não se questiona, se admira. Embora a humanidade sempre tenha notado, admirado, comentado e contemplado o belo, foram os gregos os primeiros a discutir e filosofar sobre a natureza da beleza. Curiosamente, foram também os mesmos a apreciarem e estabelecerem o conhecimento que denominamos matemática, a linguagem universal e concisa da natureza.
A beleza como a idéia acima de todas as outras (do grego ?δ?α, ou ainda forma) já era dita pelo filósofo e matemático grego Platão (c. 428 – c. 348 a.C.), discípulo de Sócrates (c. 470 – 399 a.C.), em seu grande diálogo Fédon (ou ainda “Sobre a Alma”, ao tratar as últimas discussões filosóficas de seu mestre em seu leito de morte). Ao dialogar sobre a imortalidade da alma, questionou: “seria o três outra coisa, senão indestrutível”?
De fato, as primeiras explicações sobre o conceito de beleza se devem a sábios pré-socráticos como o célebre filósofo e matemático grego Pitágoras de Samos (c. 569 – c. 475 a.C.). Os pitagóricos já observavam uma clara conexão entre beleza e matemática, por exemplo ao notarem a presença do número áureo na natureza, nas relações numéricas das notas musicais ou ainda em um assombroso e ilustre teorema que se credita ser a primeira e mais significativa noção geométrica.
Mas se a matemática é assim, tão bela, porque muitos não conseguem enxergar isto no dia a dia, e mais precisamente nas escolas? Porque as crianças e jovens não se fascinam, se admiram, se entusiasmam, se encantam, como em geral se sentem ao escutar uma música, ou observar uma pintura, uma cena de teatro/novela ou mesmo quadro? Onde, por exemplo, se encontraria beleza no Teorema de Pitágoras:
A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa. |
São questões difíceis de responder, mas talvez a maneira mais fácil seja tentar explicar por meio de analogias certas qualidades da matemática em geral – e o Teorema de Pitágoras em particular. Este poderia ser considerado tão belo quanto uma frase do dramaturgo, ator e poeta inglês William Shakespeare (1564-1616): “Ser ou não ser: eis a questão” (A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, Ato III, Cena I). Ainda que em arte seja difícil explicar por que uma poesia, uma canção, um filme ou ainda um quadro é belo, é possível realçar seus detalhes, o contexto e principalmente a vida e obra de seu artista.
A partir desta analogia, a elaboração do primeiro grande teorema da matemática se deve a alguém, a um artista dos números e formas que não sabemos ao certo quando nasceu, tão pouco quando e como viveu e morreu, quem foram exatamente seus antepassados e se teve descendentes ou não – praticamente o que se conhece de Pitágoras é que foi o primeiro grande matemático. Sua extraordinária figura é envolta de misticismos, contos, lendas, mistérios e anedotas. É inegável sua personalidade histórica. Um daqueles que o citou por conhecer seus trabalhos foi o próprio Platão. Provavelmente foi ele quem fundou uma ordem com rígidos códigos morais de conduta e com uma notável característica – a confiança no estudo da matemática como base para a conduta humana. Possivelmente viajou pelo Egito e Babilônia, tendo presumivelmente chegado até a Índia, aprendendo e absorvendo nestas viagens conhecimentos de matemática, música, astronomia e filosofia. Diz a lenda que foi aluno de um dos sete sábios da antiguidade, o filósofo, astrônomo, engenheiro e matemático grego Tales de Mileto (c. 624 – c. 546 a.C.). Ao regressar de suas peregrinações, estabeleceu-se na costa sudeste do que hoje é a Itália, fundando uma ordem secreta e comunitária absolutamente original, denominada ‘semicírculo’, onde o conhecimento e a propriedade eram considerados bens comuns. Por esta razão, as descobertas eram atribuídas à ordem, e não aos seus membros (que podiam ser homens ou mulheres, algo raro naqueles tempos). Alguns deles se autodenominavam mathematikoi (um dos significados para “cientista” em grego).
Tal ordem disseminava, entre outros conhecimentos, que certos símbolos tinham significado místico e, no seu nível mais profundo, a realidade da natureza seria matemática. Estudaram e propuseram propriedades dos números familiares a qualquer criança hoje: números pares e ímpares, números triangulares e quadrados, naturais ou não (são os hoje denominados irracionais), primos... Atribuíram características aos números, catalogando-os enquanto masculinos e femininos, perfeitos, amigáveis... Construíram ao mesmo tempo as bases do edifício teórico dos números e da geometria, até então um conjunto de regras esparsas e isoladas.
De fato, há ao menos seis qualidades da matemática que também são observadas no teorema pitagórico:
- a universalidade: o teorema não trata de alguns, mas de todos os triângulos (onde um dos ângulos é reto) cuja área do quadrado do maior lado corresponde à soma das áreas referentes aos dois outros lados do triângulo. É portanto uma afirmação poderosa, que pode ser compreendida por qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer tempo, em qualquer língua.
- a objetividade: o teorema não depende de interpretações, pois significa uma mesma coisa para todos que o entendem. Naturalmente para compreendê-lo, a pessoa tem de conhecer a sua idéia, que pode ser concisamente representada numa expressão simbólica, a linguagem matemática.
- a veracidade: tal ideia é lógica e consistente, não sendo possível estabelecer por exemplo outro resultado se as premissas forem as mesmas. Portanto, é impossível derivar uma contradição, tampouco redundância.
- a estética: a apresentação concisa de idéias se assemelha à escolha certeira da paleta de cores para determinada cena num quadro, ou de palavras num poema ou ainda de notas numa canção. A disposição clara e lógica de cada um de seus argumentos, demonstrações e provas resulta na impressão de que aquilo é suficiente, único e satisfatório – não há nada a mais a acrescentar, descrever ou mesmo melhorar.
- a resistência: o incrível teorema pitagórico significou o mesmo para os antigos gregos tanto quanto para nós em nossa época, e há razões para acreditar que continue a significar a mesma coisa para nossos descendentes. Isto também ocorre para todos os outros teoremas.
- a aplicabilidade: embora seja uma antiga discussão envolvendo a natureza da matemática, os profissionais desta área ainda se classificam entre “puros” e “aplicados”. Ao menos pode-se dizer que praticamente toda a matemática ensinada nas escolas tem algum cunho prático, como por exemplo o teorema pitagórico. Sabe-se por exemplo que os antigos egípcios muito antes de Pitágoras andavam com cordas separadas por divisões (ou nós) que representavam, quando esticada, um triângulo com 3, 4 e 5 unidades cada lado (a unidade podia ser qualquer coisa, por exemplo a distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio, denominada côvado). A aplicabilidade deste particular triângulo de cordas era produzir, por exemplo, um ângulo de 90 graus, ou seja, um particular ângulo dito reto com função de esquadro – para por exemplo estabelecer rapidamente os contornos de uma área de um terreno ou ainda levantar uma parede com ângulo de inclinação suficiente para estar perpendicular ao piso. Usava-se corda por ser algo mais fácil de carregar.
Um teorema sempre pede uma demonstração, ou uma prova. O teorema pitagórico é único em toda a matemática a apresentar várias demonstrações de sua essência e validade. Um matemático, professor, engenheiro e escritor americano, Elisha Scott Loomis (1852-1940), publicou em 1927 um livro ilustrado com 370 maneiras de se demonstrar o Teorema de Pitágoras em quatro categorias (“The Pythagorean Proposition”, National Council of Teachers of Mathematics, 1968 – 2ª edição, baseada na versão que foi impressa em 1940). Na primeira figura que ilustra o renomado teorema que se encontra neste livro o autor escreveu em letras garrafais: “contemple” e a seguir a frase em latim: “viam inveniam avt faciam”.
Tal frase: “ou encontramos um caminho, ou abrimos um”, se credita ao general e comandante cartaginês Aníbal (248 – c. 182 a.C.), em resposta aos seus comandados que tinham declarado ser impossível atravessar os Alpes com elefantes durante as Guerras Púnicas, umas das mais longas da História (264 – 146 a.C.). O recado de Loomis é claro: quando não houver como explicar uma demonstração ou prova em matemática, é sempre importante ter em mente o dito do general Aníbal: buscar um caminho, ou abrir um. Em matemática, Loomis mostrou que há pelo menos quase quatro centenas de caminhos para se contemplar a veracidade do majestoso teorema pitagórico.
Ainda sobre a natureza da matemática, e de acordo com o mesmo Loomis no início de seu livro, esta requer demonstração (do latim “demonstro”, mostrar) ou ainda prova (do latim “probo”, crível, honesto, virtuoso). O primeiro demanda expor um raciocínio embasado de uma ou mais proposições que deve resultar numa certeza. Já o segundo solicita um argumento a partir da experiência (i.e., conhecimento anterior) que não deixe dúvidas ou incertezas. Um “teorema” pode significar simplesmente algo como “peço que prove”. Loomis fez uma coletânea incrível de provas do teorema pitagórico. Muito tempo depois, na edição de 1991 do livro “Guinness Book of World Records” a obra de Loomis recebeu uma honrosa menção relacionada ao “o teorema com maior número de provas”.
Sobre as particulares qualidades estéticas da matemática, o filósofo, matemático, lógico, escritor, historiador, crítico e ativista político inglês Bertrand Arthur William Russell (1872 - 1970), Prêmio Nobel de Literatura em 1950, afirmou num livro de 1919 (“Mysticism and Logic: And Other Essays” – algo como “Misticismo e Lógica: e Outros Ensaios”, mais precisamente em “O Estudo da Matemática”) as seguintes palavras: “a matemática, vista corretamente, possui não apenas verdade, mas também suprema beleza - uma beleza fria e austera, como a da escultura, sem nenhum apelo a qualquer parte mais frágil da nossa natureza, sem os belos ornamentos da pintura ou da música, mas sublimemente pura, e capaz de uma perfeição rígida, como só a grande arte pode mostrar. O verdadeiro espírito de alegria, exaltação, no sentido de ser mais do que o Homem, que é a pedra de toque da mais alta excelência, encontra-se na matemática, tão certo como a poesia”.
Bem, matemáticos costumam designar determinadas provas pelo adjetivo elegante, um termo estético muito próprio desta particular profissão. De toda sorte é inegável, praticamente um milagre que um conhecimento matemático, seja o Teorema de Pitágoras ou outro de sua escolha particular, continue a existir, seja compreensível, verdadeiro, universal, objetivo, preciso, consistente e resistente ao tempo, espaço e interpretações. Provavelmente os conceitos matemáticos existam num mundo à parte, conforme concebido pelos antigos gregos desde Pitágoras e Platão: um mundo das “idéias” ou “formas” – onde o belo prevalece, eterno e imutável.