Tribuna da Bahia - Que leitura o senhor faz do atual momento político do país? Ainda tenso?
Augusto Aras - Diversos segmentos da sociedade, de repente, clamam pela moralidade da coisa pública, algo que vinha sendo tratado de maneira pouco republicana. Mas precisamos registrar que remédios muito fortes podem levar à morte do paciente.
É o momento para que o Estado brasileiro reflita sobre as consequências em que chegamos com atitudes importantes para a moralização da coisa pública, mas também por algum excesso ou falta de compreensão econômica, chegamos a 12 milhões de desempregados. Temos a PEC 55, que estabelece um limite de gastos e engessa a sociedade, impedindo-a de crescer.
Tribuna - Como viu o processo do impeachment da ex-presidente Dilma? Nossas instituições estão sólidas?
Augusto Aras - O processo de impeachment envolve uma parte política e uma parte jurídica. A parte jurídica que assegura o devido processo legal, o contrário, o direito de defesa e uma série de garantias de respeito ao julgamento político. Mas todo o conteúdo material da decisão do Parlamento brasileiro é eminentemente político.
Se pudermos avaliar o impeachment da presidente Dilma, não podemos perder a compreensão de que a governabilidade, que é um elemento posto neste processo político como essencial para o desenvolvimento do país, seria de natureza política.
Antes desse conteúdo de mérito, dessas questões de fundo, havia certamente a questão jurídica que deve ser respeitada porque é uma conquista dos povos.
"E por isso é necessário um maior debate público, para que a sociedade pense."
Augusto Aras
Tribuna - E o início do governo Temer? Como o senhor avalia?
Augusto Aras - Todo governo que começa do meio para o fim passa por grandes dificuldades. Eu diria que o desafio do presidente Michel Temer é entender que essa revolução pela qual o país passa é feita por jovens. Jovens procuradores, jovens policiais, advogados, e que têm uma visão peculiar.
E Temer precisa ter colaboradores que conheçam esse pensamento, porque evidentemente existe uma transformação contundente na sociedade brasileira, e temos tendências que não são as melhores para a preservação de direitos e garantias fundamentais.
Temos perspectivas de redução de direitos sociais que contrariam a Constituição de 1988 e atende todas as nossas conquistas do século XX.
Tribuna - A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos pegou muita gente de surpresa. Isso mostra a confusão da ordem mundial que vivemos hoje?
Augusto Aras - Poderíamos dizer em tese que Alexandre Kojève, o imigrante russo que prontificou nas melhores escolas francesas e orientou Sartre, Raymond Aron e outros grandes pensadores, discutiu muito o fim da política. Assim como Fukuyama discutiu o fim da história. Ambos fracassaram porque a política é a atividade essencial para preservar a harmonia e a convivência, e, toda vez que a política falha, temos a guerra.
E essa não é a nossa intenção nem o nosso desejo, principalmente em uma população como a do Brasil. Uma população historicamente pacata, ordeira, e que tem a miscigenação como um patrimônio próprio.
Então precisamos compreender o quadro brasileiro atual, que é um quadro que não está dissociado do quadro internacional, e esse quadro passa por políticas centradas especialmente em alguns aspectos. Um deles que vem nos massacrando diariamente é a doutrina do medo.
Vivemos cercados pelo medo. E essa doutrina do medo vai de encontro a certa posição política internacional, que através do medo estabelece o ódio, o rancor e o ressentimento. E, com isso, induz o cidadão a ter uma impressão de que a lei e a ordem, nos moldes da política norte-americana, possam resolver os problemas, já que pobre na periferia é quem mais sofre com a violência.
E isso é relevante dizer porque quem mais aprova a pena de morte no Brasil são as pessoas mais pobres, porque elas já vivem a pena de morte sem existir uma norma prevendo formalmente a pena de morte. Essa política do medo tem consequências desastrosas, porque leva ao crescimento de uma doutrina de direita radical em que a lei é feita pelos opressores para que os oprimidos venham a cumpri-la.
Tribuna - Vivemos uma crise de representação política?
Augusto Aras - Vivemos uma total crise de representação política. O Parlamento brasileiro, o Judiciário, a comunidade acadêmica, tratam esse assunto apenas do ponto de vista eleitoral. O eleitoral no Brasil corresponde aos efeitos do sistema político.
Então se fala da corrupção, compra de votos, fraudes eleitorais, e isso são os efeitos. Por que não tratar as causas? Podemos sim superar a grave crise de representação política nacional se tratarmos, por exemplo, do sistema partidário, já que o Brasil não pode prescindir de partidos.
O partido, é bom que se diga, é importante para que desmistifiquemos e despersonalizemos o poder. Todas as ditaduras populistas do século XX levaram à mitificação, como na Itália, na Alemanha e na Rússia.
Tribuna - O combate à corrupção virou um dos principais temas do país nos últimos tempos. Na visão do senhor, há excessos?
Augusto Aras - Os fins alcançados pela Operação Lava Jato sãos os melhores possíveis. Aliás, deveríamos ter Lava Jato desde 1500. Mas nem todos os fins justificam os meios. Se, na contemporaneidade, formos admitir a máxima de Maquiavel, vamos admitir a tortura, pau de arara, como meios legítimos.
Não podemos confundir a Lava Jato como um momento da história, da política, do direito e da economia em que o sistema de Justiça emprega meios que cerceiam a liberdade pública. Há uns quatro anos o STF começou a limitar o habeas corpus, não o admitindo como sucedâneo de recurso.
Antigamente, o indivíduo era preso, o seu advogado entrava com o habeas corpus que era negado no Tribunal de Justiça, no STJ, mas era aprovado no STF. Em 30 dias um cidadão injustamente preso estaria solto. Hoje em dia, não, e isso significa um retrocesso.
Tribuna - Como vê o instrumento da delação premiada?
Augusto Aras - Precisamos ter o Estado brasileiro atualizado para atender às demandas do tempo. Nosso sistema jurídico de origem romana é extremamente formal, diferente do anglo-saxônico, que vai direto ao assunto, sem muitos rodeios.
O direito brasileiro, para se atualizar no fato político e econômico, teve que mesclar e se adaptar. Temos o direito penal com a delação premiada que funcionou muito bem nos Estados Unidos no combate à máfia, e o Brasil também precisava encontrar a sua saída.
O problema da delação premiada não diz respeito a questões morais. O problema é quando essa colaboração processual, como alguns preferem chamar, o Ministério Público precisa estar atento porque conhecemos casos em que autoridades do Judiciário, autoridades policiais, procuraram usar esses colaboradores para atingir fins imorais, para satisfazer caprichos próprios.
A delação premiada, por si só, não é uma prova absoluta, até porque não existem provas absolutas. É apenas um meio para se investigar de forma mais profunda.
Tribuna - O senhor acredita no uso político da Operação Lava Jato?
Augusto Aras - É muito difícil saber onde começa e onde termina uma eventual intenção política. A Lava Jato é apenas uma das últimas operações que deram certo.
O Banestado, por exemplo, deu errado porque o STJ concluiu que muitas provas foram colhidas de forma ilícita.
Tribuna - Há algum risco de a Lava Jato também ser anulada por erros e interferências políticas?
Augusto Aras - Prefiro tratar do assunto juridicamente. Politicamente, sempre há interesses políticos porque a política é da nossa natureza. Ou nós fazemos política ou fazemos guerra. Só que eu não sou político partidário, e muitos colegas da Lava Jato certamente não o são, mas não podemos ignorar que muitos setores podem explorar a operação politicamente, partidariamente.
A dificuldade que temos hoje em relação à Operação Lava Jato é que ela atinge todo o sistema partidário, e a nossa preocupação é como salvar o sistema partidário. Temos duas hipóteses, superar a crise da representação e preservar os partidos que são tão essenciais para evitar as ditaduras: a primeira é cláusula de barreira, não podemos ter 35 partidos com iguais direitos de funcionamento parlamentar em que o governo Dilma tinha nove partidos, com 39 ministérios transformados em feudos.
Temer reduziu cinco ou sete e reduziu os ministérios, e temos a questão da governabilidade. O Brasil tem o presidencialismo de coalizão, que é uma nova forma de feudalismo. O presidente, para governar, divide o bolo entre alguns partidos relevantes, e esses senhores feudais transformam aquilo em um patrimônio privado provocando o velho patrimonialismo que consome a sociedade brasileira desde 1500.
Tribuna - Há muito abuso de autoridade nos dias de hoje?
Augusto Aras - Vejo o abuso de autoridade com preocupação, porque quem sofre o maior abuso de autoridade é a comunidade pobre, negra, é a mulher, é a comunidade sem representação política. Porque a mulher, embora seja maioria da população brasileira, ainda não tem representação política adequada.
Quando é que alguém, que mora na zona nobre, saberá na pele o que é abuso de autoridade? Pode vir a sofrer, mas quem sofre no cotidiano a dor de uma prisão ilegal, um tapa na cara sem explicação, é o pobre desprotegido, que não tem ninguém por si.
Que venham leis que punam o abuso de autoridade. Jamais admiti violações aos meus deveres funcionais, éticos, profissionais.
Tribuna - Há muito abuso de autoridade nos dias de hoje?
Augusto Aras - Vejo o abuso de autoridade com preocupação, porque quem sofre o maior abuso de autoridade é a comunidade pobre, negra, é a mulher, é a comunidade sem representação política.
Porque a mulher, embora seja maioria da população brasileira, ainda não tem representação política adequada. Quando é que alguém, que mora na zona nobre, saberá na pele o que é abuso de autoridade?
Pode vir a sofrer, mas quem sofre no cotidiano a dor de uma prisão ilegal, um tapa na cara sem explicação, é o pobre desprotegido, que não tem ninguém por si. Que venham leis que punam o abuso de autoridade. Jamais admiti violações aos meus deveres funcionais, éticos, profissionais.
Tribuna - O foro privilegiado contribui para a sensação de impunidade no país?
Augusto Aras - A democracia é o governo do possível. O estado de direito é o estado em que o direito se impõe independente da vontade do rei, dos poderosos, e em tese garante a igualdade entre todos nós.
O que nós temos do foro privilegiado, que melhor seria chamar de prerrogativa de foro, é a possibilidade de que pessoas em determinada situação jurídica, funcional, administrativa, possa ser julgada por pessoas de um nível igual ou superior.
Existe um ditado que a corda arrebenta no lado mais fraco. Quando somos jovens não acreditamos nisso, porque tendemos a acreditar que realmente no estado democrático de direito existem direitos iguais. Sabemos que na prática não é verdade.
A democracia é um ideal a ser alcançado, e o estado de direito é o instrumento dessa democracia que queremos ver pujante sempre e em um processo constante de amadurecimento.
Creio que devemos ter a prerrogativa de foro preservada para que, aqueles que têm uma situação distinta, possam ser julgados sem perseguição e dentro daquele conjunto normativo assegurado pela Constituição.
O STF pode muito bem constituir um colegiado sob a supervisão do próprio Supremo para atender a essas autoridades que tenham foro privilegiado e assim evitar que tenham tratamento distinto.
"Quem age dentro da lei, não tem que ter medo de lei de abuso de autoridade."
Augusto Aras
Tribuna - Qual a avaliação do senhor da PEC 241, que virou PEC 55 no Senado?
Augusto Aras - Temos que ter uma visão crítica da PEC, que atinge diretamente o Poder Judiciário, o Ministério Público e Poder Legislativo. E por que atinge? Porque esses três segmentos que formam aquilo que se chama de República Federativa do Brasil consomem 10% do orçamento anual.
Os 90% restantes estão nas mãos da administração da União. Desses 90%, de acordo com a PEC, 70% são verbas vinculadas, ou seja, devem ser gastas em educação, saúde… Mas a União tem uma figura em seu favor chamada DRU, e essa DRU tem ampla discricionariedade para utilizar esse orçamento da maneira que quiser.
Ora, temos teto rígido para os poderes, sendo impossível que avancemos além, mas temos a União com 30% de DRU, o que vamos imaginar é a possibilidade de o Legislativo e o Judiciário mendigarem na mão do Executivo créditos suplementares mediante negociação que não sabemos como será.
E outra coisa: e o Brasil, desde os seus preâmbulos e a Constituição, estabelece o seu desenvolvimento para garantir uma sociedade justa e soberana, a erradicação da pobreza. O teto para os gastos por 20 anos significa dizer para esses cidadãos que não podem fazer filho, porque o crescimento populacional interfere diretamente na prestação dos serviços essenciais.
Podemos imaginar que quem planejou a PEC tenha tido a melhor das intenções, mas a verdade é que a PEC engessa a economia, ignora o crescimento populacional, para cada aposentado não se pode criar um novo cargo, a economia fica estagnada, porque sem investimentos o dinheiro não vai circular e promover o crescimento.
Se passar no Congresso, parece uma dessas leis que não vão pegar. Nem o consumo ganha com essa PEC do teto. O ganho é que o Executivo evita as regras, argumentando que tem a DRU e utiliza o orçamento como quiser.
Tribuna - Que mensagem o senhor deixa para a população, sobretudo nesse momento tão conturbado que vivemos na política?
Augusto Aras - Faço um desafio a todos os que estão preocupados com a nossa pátria. Conquistamos um estado democrático de direito através da vida de muitos que nos antecederam, de famílias que perderam membros, conquistamos com sangue, suor e lágrimas. Vivemos o momento em que a sociedade brasileira, por meio da doutrina do medo, pede uma doutrina que reduz direitos sociais em troca de uma suposta segurança.
Segurança essa que quem dá são os poderosos, e nós não podemos ter uma sociedade estável, em desenvolvimento constante em conformidade com suas peculiaridades, sem entendermos que direitos fundamentais e garantias sociais por nós conquistados não podem ceder ao medo. Agora, mais do que nunca, a esperança precisa vencer o medo.
*Colaborou Gulherme Reis