O ano era 1985. Um jovem, com cabelos longos e vestimentas que remetiam à identidade indígena, chamou atenção do Velho Guerreiro. Chacrinha (1917-1988) gostou do que ouviu e levou Luiz Caldas para o palco do Cassino do Chacrinha. Estava dada a largada na axé music, com o sucesso Fricote, que fazia parte do histórico álbum Magia, produzido no estúdio WR, de Wesley Rangel (1967-2016).
A largada no trio elétrico, no entanto, veio bem antes: em 1950, quando Dodô e Osmar, inspirados pelo frevo de Pernambuco, subiram em um Ford Bigode, munidos de um cavaquinho batizado de “pau elétrico”.
“A cena era cada artista em busca do seu som e nesta busca eu achei o meu caminho, que é extensão do baile. Não se pode perder de vista que havia a cena pré-axé, marcada pelo galope paraibano e frevo pernambucano. As dificuldades eram imensas e o resultado está aí, 30 anos depois, porque o disco Magia, de 1985, é a obra emblemática que superou todas as dificuldades. No tocante às mulheres, não havia preconceito. No começo, as mulheres atuavam nas bandas como vocalistas. Depois veio a carreira solo, atuando como intérpretes”, pontua Luiz Caldas.
Chacrinha também deu um belo empurrão na carreira de Sarajane, primeira cantora do gênero. Em 1986, com apenas 18 anos, Sarajane estourou com o hit A Roda, de seu primeiro álbum solo. O trabalho lhe rendeu disco de platina – mais de 600 mil cópias vendidas – e um videoclipe no Fantástico, gravado em 1987.
Ainda em 86, o Chiclete Com Banana explodiu nacionalmente com o disco Gritos de Guerra e a antológica música Eu Sou Negão, de Gerônimo, ganhou o Carnaval.
“Como os primeiros caminhos já estavam abertos com a minha carreira, a indústria da música se voltou para a Bahia e ao abrir os olhos para a Bahia possibilitou a ascensão das mulheres, que passaram a ter vez e voz e neste bojo Sarajane está na linha de frente”, diz Luiz Caldas.
“A rítmica que eu trouxe para rua foi a do negro, do afro… eu comecei a tocar música negra nas ruas numa época onde existia um preconceito racial grandioso em todos sentidos. Não estou dizendo que eu transformei nada, não gosto de dizer isso, até porque eu já achei tudo pronto. Eu só cantei isso porque era minha referência. A única coisa que eu conhecia era aquilo”, afirma Sarajane.
Sarajane gravou 18 álbuns, faturou diversos prêmios e até pousou para a Playboy em 1990.
Ao todo, Sarajane gravou 18 álbuns, faturou diversos prêmios e até pousou para a Playboy em 1990. “Sara é a primeira estrela do axé, a primeira mulher a fazer sucesso. Tanto que, no auge, ela faz um ensaio para Playboy”, afirma o crítico musical Hagamenon Brito, que em 87, batizou a cena de forma pejorativa. “Eu quis satirizar a pretensão internacional de alguns daqueles artistas”, revela o jornalista.
Na época, roqueiros baianos usavam o termo axé para classificar coisas bregas. “Eu uni axé ao sufixo inglês music para zoar quem dizia que aquele som faria sucesso até no exterior. Errei na previsão”, admite, entre risos.
O nome perdeu o sentido pejorativo e começou a ser utilizado até mesmo pelos artistas quando a imprensa do Rio e São Paulo passaram a usá-lo. “Eu sempre respeitei todas as tribos e em todos os meus discos você vai ouvir merengue, salsa, bolero, forró, pop, rock…sempre tinha tudo. Hagamenon sempre me respeitou muito, então eu nunca ouvi ele falar mal de mim, mas a maioria ele jogava duro”, conta Sarajane.
Para o jornalista e colunista Osmar Martins, mais conhecido como Marrom, Sarajane merece ser respeitada, pois “ela metia a cara mesmo”. Marrom acredita que apesar de uma pequena discriminação no começo, “as mulheres conseguiram reverter isso tanto que hoje as grandes estrelas são Ivete Sangalo e Claudia Leitte”.
A proximidade com a música afro foi fundamental para a axé music. “O Ilê Aiyê tem mais de 40 anos, o Olodum tem 37, o Malê Debalê tem mais de 40…o axé foi construído com essa mistura rítmica, com a levada de cada um desses blocos”, pontua Margareth Menezes.
“Não tenho a menor dúvida que a base rítmica do axé é o samba reggae. Há uma tentativa de sintetizar um fenômeno que é coletivo, um fenômeno que fundamentalmente é para as massas”, acredita a jornalista, diretora de projetos e percussionista da Didá, Viviam Caroline.
Não à toa muitas bandas e artistas solo passaram a fazer sucesso gravando samba reggae. A extinta Reflexu’s, liderada pela cantora Marinez, é um exemplo: com Madagascar Olodum, do álbum Reflexu’s da Mãe África (1987), o grupo vendeu 800 mil discos.
A Reflexus foi ainda mais longe: primeira banda baiana a se apresentar no Canecão, uma das casas de shows mais famosas do país. O grupo conquistou cinco discos de ouro, seis de platina e um de diamante e fez carreira internacional, gravando em outros países como Venezuela, Canadá e França.
Também bebendo da mesma fonte, tem a Banda Mel, formada em 1984, com Boock Jones e as irmãs Janete Dantas e Jaciara Dantas à frente. Em 1991, com o disco Negra, emplacou um dos hinos da axé music: Baianidade Nagô.
“Avalio o samba reggae como sendo de grande importância, uma vez que a nossa música afro pop é o gênero que mais caracteriza a música baiana, além de ser um retrato fiel da cultura e identidade do povo afrodescendente baiano. Um exemplo é Faraó, a primeira música do ritmo samba reggae, que tive a honra de ser a primeira cantora a gravar. Um grito de guerra ecoado nos idos de 1986 e que jamais será esquecido: Eu falei Faraóóó”, diz Janete.
“Como todo começo foi difícil, mas nunca deixei me intimidar pelos obstáculos que surgiam. Ser mulher, jovem e cantar bem um ritmo que era novo, além de usar figurinos ousados para época num espaço que era quase exclusivamente masculino…gerou polêmicas”, emenda a cantora.
Banda Mel - Arquivo Pessoal
Outra grande revelação feminina da Banda Mel é Márcia Short, que encabeçou a segunda e mais famosa formação. “Tenho tantas musas, mas Sarajane é minha campeã aqui na Bahia”, entrega Short, que garante só ter sentido dificuldades na cena depois de deixar o grupo: “Trabalhava na empresa Mel e ela fazia parte dos intocáveis donos de blocos”.
Para a cantora, os blocos trouxeram coisas positivas e outras nem tanto. “A maioria dos equívocos nos são trazidos por esses blocos, que com poder aquisitivo, rotulam nossa música com elementos que não nos pertencem”, acredita.
Antes atriz, um dos maiores nomes femininos da axé music até os dias atuais, deu pontapé inicial em sua carreira musical em 1986. Através do projeto Pixinguinha, Margareth Menezes fez apresentações no Teatro Castro Alves.
No ano seguinte, passou a liderar o bloco 20 Vê e depois foi convidada para se apresentar no VIII Festival de Música do Caribe, realizado em Cartagena, na Colômbia, ao lado de Pepeu Gomes.
Em 1987, Margareth participou do LP de Djalma Oliveira no primeiro samba-reggae gravado no Brasil, Faraó – Divindade do Egito, música de Luciano Gomes, que vendeu mais de 100 mil cópias. “Muitos sucessos da música baiana contemporânea tem a nascente nesses blocos afro. Não é música de Carnaval. É divulgada no Carnaval, mas tem cunho político, social, cultural”, afirma Maga, que entre outros feitos, emplacou Ellegibô no topo da Billboard World Albums, nos Estados Unidos, ficando por lá durante onze semanas.
Antes atriz, Margareth Menezes iniciou sua carreira musical em 1986. (Foto: Divulgação)
“Margareth Menezes veio tirando no braço, veio lutando. Ela conseguiu chegar onde ela chegou agora e conseguiu o respeito que tem agora por ela mesma. Não foi ninguém que fez Margareth. Eu lembro dela, acompanho a trajetória…hoje ela é uma cantora estabilizada, uma cantora reconhecida mundialmente porque lutou e foi sozinha”, ressalta Bell Marques, um dos grandes impulsionadores do gênero.
Em 1988, o Asa de Águia apresentou seu primeiro single Bota Pra Ferver. Com o sucesso nas rádios baianas, o grupo foi convidado a gravar seu álbum de estreia.
Um ano depois, em 1989, a Banda Beijo, ainda liderada por Netinho, era a bola da vez. A música Beijo na Boca, mistura de lambada e samba reggae, foi um grande sucesso. No mesmo ano, o Olodum se tornou conhecido mundialmente ao participar do clipe de Paul Simon e Carlinhos Brown lançou o movimento denominado Timbalada, que viria a gravar seu primeiro disco em 1993.
Uma das maiores estrelas do gênero na atualidade, na época, era apenas uma espectadora. “Eu era uma foliã. Estava nas ruas, me divertindo com aquele movimento. Ia aos clubes para os shows, nos carnavais eu estava na rua, me jogando e me deliciando com essa música”, conta Ivete Sangalo.
“Dentre todos os estilos musicais que se fizeram e se fazem presentes no cotidiano do povo brasileiro, a axé music é o que mais se assemelha e representa esta capacidade que temos de preservar a felicidade e a esperança independente do que se passa à nossa volta. A influência e a ascendência do povo africano na construção do jeito de ser e de viver da gente soteropolitana contribuiu e muito com a música produzida na Bahia desde a explosão do axé décadas atrás”, ressalta Netinho.
“Nostalgia, tristeza, dor de cotovelo, dor de corno, lamentos, amores impossíveis, esses sentimentos nunca fizeram parte do universo da música axé. Nesse sentido, a ordem sempre foi alegria, festa, animação, positividade, romance, sensualidade e amores felizes. Tudo isso somado ao seu ritmo quente e percussivo. Penso que descrevi a natureza exata da axé music como a enxergo, e dessa forma coloquei o que vejo de contribuição feliz que este movimento trouxe para o povo brasileiro sobretudo durante toda a década de 1990 quando dominou as rádios, Tevês e a venda de música aqui no Brasil”, encerra o cantor.