Opinião

Baudelaire, de Paris a Salvador

Antonio Lins

No meio de uma multidão cada vez mais numerosa, entre carruagens em alta velocidade e em uma metrópole em eterna reconstrução, Charles Baudelaire sentia-se na obrigação de refletir sobre o espírito e a forma desses novos tempos, que ele sintetiza na palavra modernidade. Dedicou vários de seus ensaios a esse tema, além de retratá-lo na maioria de seus textos poéticos.

Porém, é difícil considerar a modernidade como apenas um “tema” de Baudelaire. De alguma forma, as preocupações do seu mundo moderno são as mesmas do mundo de agora. Não é possível falar de período pós-moderno da história: ainda vivemos sob o sistema capitalista e seus ideais burgueses defendidos durante a revolução francesa. Dessa forma, Baudelaire, tal como Hegel e Goethe é um fundador da modernidade de hoje.

Para quem ainda tem alguma dúvida, basta abrir uma janela em um prédio em Salvador. Veremos a mesmas grandes avenidas, carros em alta velocidade e contrastes representados na obra de Baudelaire. A Paris do poeta, por seu lado, quase nada mudou. Conserva-se intacta e é idolatrada anualmente por milhões de turistas, como se fosse um totem da nossa era.

A visão mais conhecida de modernidade em Baudelaire encontra-se no ensaio “Le peintre de la vie moderne”, dedicado ao pintor Constantin Guys. Para o poeta, a arte era de alguma forma dotada de uma qualidade universal que, para ser atraente, devia ser revestida por uma crosta de atualidade. Essa definição poderia ser considerada como uma anti-definição, já que faz a modernidade aplicável a qualquer momento da história. Todos os tempos seriam tempos modernos.

É preciso perguntar então qual seria a modernidade do seu tempo, a crosta que faria atraentes os seus próprios poemas. A resposta é clara tanto em seus ensaios quanto em suas obras poéticas: não há nada mais moderno para o poeta que a vida nas grandes cidades. Porém, não é clara a sua posição sobre essa nova vida. Como afirma Marshall Berman, seus ensaios apresentam ora visões pastorais ora anti-pastorais sobre as características da metrópole moderna.

Um exemplo de “visão pastoral” é o próprio ensaio “le peintre de la vie moderne”, no qual Baudelaire aponta que toda a beleza é proveniente do “progresso da razão” e não da natureza, como se defendia no século XVIII. Dentro dessa beleza e dessa nobreza, Baudelaire coloca outras preocupações modernas, como a moda e os uniformes militares, aos quais dedica boa parte do ensaio.

Chega a chocar a mudança radical de posição que podemos observar em outro ensaio quase contemporâneo ao “Peintre”.

A visão anti-pastoral da modernidade atinge tal ponto em outros ensaios, que Baudelaire afirma que a poesia e o progresso são como dois homens ambiciosos que se odeiam mutuamente.

Essas contradições dentro da obra crítica do poeta não dificultam a identificação da sua idéia de modernidade. Muito pelo contrário: elas constituem nossos principais argumentos para defender que a modernidade para Baudelaire está intimamente ligada à noção de conflito ou, se quisermos de contradição. O conflito configura-se como o centro da vida quotidiana moderna, ou seja, da vida nas grandes cidades.

A Paris de Baudelaire era uma cidade de conflitos. Enquanto ele escrevia seus mais importantes poemas, o Barão Haussmann, prefeito da cidade, destruía as construções medievais para abrir grandes avenidas, que funcionariam como verdadeiras artérias de um novo sistema circulatório urbano. Nesses bulevares, foram construídas também largas calçadas, e sobre elas, os cafés que hoje caracterizam Paris. Mas essa não foi a única mudança: as avenidas encontravam-se dentro de um amplo programa de urbanização, que contemplava a construção de parques e passeios públicos, mercados, teatros e palácios destinados à cultura. Dessa forma, a convivência se transferiu das casas à próprias vias públicas, onde se encontravam a aristocracia e classe social mais baixa, sem que ninguém pudesse fechar as portas.

Os parisienses assim eram obrigados a observar o profundo contraste social que até então não habitava os seus salões. O crítico marxista Marshall Berman, no seu já citado ensaio sobre a literatura e a cidade, destaca especialmente essa nova característica de Paris ao se referir ao poema em prosa “Les yeux de pauvres”: “Esta cena primária revela algumas das ironias e contradições mais profundas na vida moderna na cidade. O marco que faz toda a humanidade urbana uma “família de olhos” extensa, faz aparecer os enteados abanados dessa família. As transformações físicas e sociais que tiraram os pobres da vista agora os trazem de novo diretamente ao campo visual de todos”.

As grandes avenidas não deixavam exposto apenas o conflito entre as pessoas de diferentes classes: também revelavam o contraste entre o indivíduo e a multidão. Enquanto estava na rua, o indivíduo deixava de ser ele mesmo, para se transformar em apenas uma peça do sistema circulatório urbano. Ao abrir a porta de sua casa, ele voltava a ser ele mesmo e a ter que decidir o que fazer com sua vida. Essa nova divisão trazia consigo também uma sensação de eterno conflito, já que por um lado provocava angústia (pela perda de controle) e por outro, alívio (pela alienação).

Sobre a ambigüidade dessa sensação, a sensação do flanêur, não há obra crítica mais importante que a coletânea de ensaios Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, de Walter Benjamin, na qual o pensador alemão afirma: “é precisamente a imagem da multidão das metrópoles que se tornou determinante para Baudelaire. Se sucumbia à violência com a que ela o atraía para si, convertendo-o, enquanto flanêur em um dos seus, mesmo assim não o abandonava a sensação de sua natureza inumana. Ele se faz seu cúmplice para, quase no mesmo instante, isolar-se dela. Mistura-se a ela intimamente, para, inopinadamente, arremessá-la no vazio com um olhar de desprezo”

Nas suas perambulações pela nova cidade, o parisiense devia passar obrigatoriamente por uma das mais novas formas de comércio: as galerias, onde as mercadorias estavam em permanente exibição. Durante os segundos que o transeunte passava pela vitrine, ele se imaginava a si mesmo dono dessa mercadoria, e assim podia desprender-se tanto de sua própria condição social, quanto de sua identidade. Como explica Benjamin, a atração pelas vitrines funcionaria como um verdadeiro entorpecente, que faria o próprio sujeito, se ver, durante um lapso, como a própria mercadoria.

E nesse ponto tocamos o último fator de conflito da cidade grande. No espaço íntimo, longe da multidão e das vitrines, o cidadão se veria confrontado à sua própria condição de isolamento. É necessário então criar uma forma de alienação doméstica, que mimetize o efeito da mercadoria. Nos dias de hoje, a internet cumpre essa função. Para Baudelaire, apenas os entorpecentes, principalmente o ópio e o hachiche, podiam levá-lo para longe do seu quarto.

Mesmo se o conflito das grandes cidades é descrito em toda a sua obra, o livro inacabado Spleen de Paris ou Pequenos poemas em prosa, é o mais ambicioso nesse propósito. No seu prefácio, “À Arsène Houssaye”, Baudelaire explica que ao escrever uma prosa poética, ele pretendia dar uma forma literária à convivência nas grandes cidades.

Como o conflito das grandes cidades se expressa na forma literária dos poemas em prosa? Para responder essa pergunta, é necessário antes entender a especificidade do novo gênero.

Como o próprio Baudelaire explica, o poema em prosa não é exatamente um poema, pois prescinde da métrica e do ritmo. Mas, já que é uma narrativa curta, por que não poderia ser um conto?

Julio Cortázar, um dos mestres desse gênero na literatura, afirma que o conto estaria para o romance como a fotografia para o filme. Enquanto o filme ou romance se concentraria no desenvolvimento de elementos parciais, o conto se basearia em apenas uma imagem, mas em uma imagem significativa que produzisse algum tipo de abertura no leitor.

O poema em prosa não poderia ser considerado como o relato de uma imagem significativa, mas como a representação do choque entre duas imagens. Assim, seu equivalente visual não seria nem a fotografia, nem o filme, mas a junção entre dois fotogramas. Por essa razão, é possível afirmar que o conflito das cidades está no centro da forma literária do poema em prosa.

Agora, como se estruturaria esse conflito no texto? Veremos em seguida o exemplo de dois poemas de Baudelaire, mas antes gostaria de balizar alguns pontos. As narrativas do Spleen de Paris, longas ou muitas curtas, são divididas em geral em duas partes. Uma delas apresenta uma descrição impessoal, sem narrador definido, onde a figura do “eu” está quase ausente. A outra parte, pelo contrário, é caracterizada por uma forte presença de um sujeito, que estaria inclusive mais próximo do eu lírico da poesia do que do narrador em primeira pessoa de um conto. Desta forma, os poemas teriam uma estrutura de conflito entre o desprendimento (ou alienação) e de introspecção ou ensimesmamento, da mesma maneira que a sensação provocada pela multidão, pela mercadoria ou pelos entorpecentes. Se a alienação é vista como o ideal e a introspecção como um demônio (ou spleen), é o que veremos na análise de “La chambre double” e “Les fenêtres”. 

“La chambre double” é um exemplo paradigmático da estrutura dual do poema em prosa. O próprio título já sugere divisão, que se dá exatamente na metade do texto, com a frase: “Mais un coup terrible, lourd, a retenti la porte(...)”. Poucos poemas oferecem tão claramente a visão da divisória ou, como chamamos, da união dos fotogramas.

Na primeira parte, encontramos uma descrição de um quarto “espiritual”, feito da matéria dos sonhos, todo em cores rosa e azul. Os móveis não são inanimados, têm uma vida sonâmbula, “como o vegetal e o mineral”. Ali não se está só, ali a existência é plural, não individual. O pronome “je” aparece apenas algumas vezes, no final da descrição, e não tem o papel de protagonizar uma ação, mas de estabelecer uma conclusão sobre as sensações descritas, como na frase: “ce que nommons généralement la vie (...)n’a rien de commun avec cette vie suprême dont j’ai maintenant connaissance et que je savoure minute para minute, seconde par seconde!”

O eu não poderia ser de fato o protagonista desta ação, pois ele sequer é dono de seu próprio olhar. Os olhos da Ídola, soberana dos sonhos, que está no quarto, devoram os olhos de quem a contempla e comandam a curiosidade e a admiração. Assim, nesse primeiro quarto, ou nessa primeira parte do quarto “duplo”, a identidade se dissolve, o eu se transforma em uma parte desta multidão composta de móveis, impressões e sonhos. Nesse mundo sem percepção fixa, sem direção, o tempo desaparece, e com ele, a angústia.

Mas o golpe na porta anuncia a entrada do Espectro, que toma diferentes formas: um oficial de justiça que vem torturá-lo em nome da lei, uma infame concubina com suas trivialidades, um diretor de jornal que reclama a continuação de um manuscrito. E com essas personagens, é impossível continuar na impessoalidade do quarto “paradisíaco”, é inevitável voltar ao eu: “Horreur! Je me souviens! Je me souviens! Oui! Ce taudis, ce séjour éternel de l’ennui, est bien le mien”. A retorno à identidade traz consigo o frio, a podridão, a sujeira, a poeira, o cheiro nauseabundo do tabaco e os manuscritos incompletos, com datas sinistras de entrega, que o fazem subitamente, voltar à linha do tempo. Nada resta do quarto de sonhos eterno nesse aqui e agora: “On respire ici maintenant le ranci de la désolation”.

Somente um objeto sorri ao novo eu empossado de identidade: a pequena garrafa de láudano, uma velha amiga, mas como todas as velhas amigas, traiçoeira. Essa palavra tem um papel decisivo no poema, já que muda toda a percepção do quarto anterior. A alienação do ópio não é vista como um paraíso completo, ela carrega a traição. Não sabemos por quê: podem ser seus efeitos colaterais ou o fato dela ser passageira. Mas sabemos que a alienação não é uma salvação completa. E o quarto de sonhos não pode ser mais visto como uma eternidade de delícias: é ele o responsável por esse choque tão forte, e pela percepção de que o eu é um escravo, que sua vida é o inferno e que o seu demônio é o próprio tempo.

O poema em prosa “Les fenêtres” também sugere no seu título o conflito de realidades, já que a janela por si é um objeto de contato de dois mundos diferentes, o de fora e o de dentro. Mas no primeiro parágrafo do texto, percebemos que os mundos que serão descritos não estão em contato, são distantes. São aqueles que se escondem por trás de cada janela fechada, escura ou iluminada por uma vela.

Nessas janelas, vê-se uma pobre mulher enrugada: a partir de seu rosto, ou de um gesto, o poeta pode reconstruir a sua história e a sua lenda. Nesta parte do poema em prosa, tal como em “La chambre double”, as descrições são feitas de forma impessoal, mesmo se o pronome “je” é bem mais usado aqui. Os exemplos de impessoalidade se concentram, sobretudo, no primeiro parágrafo, onde pode ser lida, por exemplo, a frase “ce qu’on peut voir au soleil est toujours moins intéressant que ce qui se passe derrière une vitre”.

O “je” será usado nos seguintes parágrafos como ponto de partida para a observação, como por exemplo: “Par delà de vagues de toits, j’aperçois une femme mûre”. Mas, no terceiro parágrafo, o pronome muda completamente de papel na seguinte frase: “Et je me couche, fier d’avoir vécu et souffert dans d’autres que moi-même”. Dessa forma, como no poema anterior, abandona-se o desprendimento para voltar a um momento de introspecção.

Neste caso, no entanto, essa volta não é angustiante. O “eu lírico” dorme orgulhoso de ter vivido nos outros. Só uma voz interrompe essa placidez: “Peut-être me diriez-vous: “Est-tu sûr que cette légende soit la vraie?”. Quem é esse vous? A tão marcada presença do “je” como eu lírico, o poeta, só deixa uma alternativa: que esse “vous” represente o leitor. Baudelaire dá assim ao leitor o poder de questionar a alegria da alienação.

Mas ele não é o oficial de justiça ou o diretor do jornal do poema anterior: ele não traz consigo o inferno. O leitor é o conflito em si: é o lugar onde entram em contato a angústia do isolamento e a alegria da alienação. Baudelaire projeta assim um leitor extremamente moderno, que não é um simples ouvinte: tem a responsabilidade da síntese crítica das realidades fragmentadas. Uma responsabilidade que deve persistir mesmo depois da última frase de “Les fenêtres”: “Qu’importe ce que peut être la réalite placée hors de moi, si elle m’a aidé à vivre, à sentir que je suis et ce que je su

Baudelaire foi pouco lido em sua época e muitos de seus poemas foram inclusive proibidos. Walter Benjamin arrisca que isso aconteceu porque o leitor ao qual se dirigia só seria proporcionado na época seguinte.

Ou depois. Nos dias de hoje, as narrativas são cada vez mais fragmentadas, e colocam no leitor quase toda a responsabilidade da síntese, da encadeação dos elementos parciais. É o caso da literatura do Nouveau Roman, por exemplo, que prescinde inclusive das descrições psicológicas das personagens.

Era necessário ainda que o leitor se desprendesse da necessidade da representação, para que a modernidade narrativa de Baudelaire fosse compreendida. Com o advento da fotografia e do cinema, a literatura foi sendo liberada aos poucos de sua função de retratar uma determinada personagem ou contar uma história. Outra função foi tomando esse lugar vazio, a função de gerar atitudes, sínteses, conflitos no leitor em relação a sua própria condição.

Deste modo, ao falar da modernidade de Baudelaire, não estamos nos referindo apenas ao apontamento dos conflitos da convivência urbana. Além de apontar, Baudelaire estava introduzindo uma nova forma de participação na sociedade, tão presente na vida intelectual do século XX, e da qual hoje, fazemos questão de nos alienar quotidianamente através de uma janela colorida.