
Mãe Carmen do Gantois, uma das líderes espirituais mais respeitadas do candomblé no Brasil, morreu aos 98 anos na cidade de Salvador, na Bahia, onde liderou o tradicional Terreiro do Gantois por mais de duas décadas.
A morte ocorreu no Hospital Português, onde ela estava internada tratando um quadro de gripe, conforme informaram seus familiares.
Nascida em 29 de dezembro de 1926, Carmen Oliveira da Silva completaria 99 anos na segunda-feira.
Ela era a filha mais nova de Mãe Menininha do Gantois, uma das autoras espirituais mais influentes da religião afro-brasileira, e irmã de Mãe Cleusa Millet, que a precedeu na liderança do terreiro.
Desde a infância, Mãe Carmen foi iniciada no candomblé -- sendo consagrada ao orixá Oxalá, que se tornou seu orixá de cabeça -- e logo se aprofundou nos estudos e obrigações espirituais da religião tradicional de matriz africana.
Ela passou grande parte da vida ao lado de sua mãe e, posteriormente, assumiu a liderança do Ilé Ìyá Omi À Ìyámase, mais conhecido como Terreiro do Gantois. Após a morte de sua irmã, Mãe Cleusa de Nanã, em 1997, Mãe Carmen tornou-se a ialorixá (mãe-de-santo) líder da casa, cargo que exerceu até seus últimos anos.
Sob sua orientação, o Terreiro do Gantois continuou sendo um dos espaços centrais de culto, manutenção de tradições e resistência cultural em Salvador, reunindo gerações de filhos e filhas de santo, visitantes e pesquisadores interessados nas práticas e saberes do candomblé.
Legado religioso e ativismo cultural
Mãe Carmen não foi apenas uma líder espiritual; ela também se destacou como militante pela liberdade religiosa, pelo combate ao racismo e pela preservação da cultura afro-brasileira. Sua trajetória envolveu ações sociais e educativas, com atividades voltadas à comunidade da Federação -- bairro onde está localizado o terreiro -- incluindo cursos de ritmos, dança, bordados e rodas culturais que reforçaram a memória ancestral do candomblé.
O trabalho de Mãe Carmen ultrapassou os limites religiosos e ganhou reconhecimento público: recebeu a Comenda Maria Quitéria, concedida pela Câmara Municipal de Salvador, em reconhecimento à sua contribuição social e cultural. Também foi homenageada com a “Medalha dos 5 Continentes ou da Diversidade Cultural”, entregue pela Unesco, que destacou sua liderança e papel na promoção do diálogo inter-religioso e da diversidade cultural.
Influência na arte e na memória cultural
O legado de Mãe Carmen também inspirou manifestações artísticas e projetos culturais de grande impacto. O documentário Obatalá, o Pai da Criação apresentou sua vida e religião ao público em geral, culminando no álbum Obatalá: Uma Homenagem à Mãe Carmen, que reuniu artistas consagrados -- como Gilberto Gil, Alcione, Carlinhos Brown, Ivete Sangalo e Daniela Mercury -- e foi indicado ao Grammy Latino, reforçando a presença do candomblé na cultura popular nacional.
Ao longo de sua longa vida, Mãe Carmen foi considerada não apenas uma guardiã das tradições do Terreiro do Gantois, mas também um símbolo de resistência, fé e identidade cultural. Em nota oficial divulgada pelo terreiro, sua passagem ao Orun (plano espiritual na cosmologia iorubá) foi saudada como um retorno consagrado, ocorrendo em uma sexta-feira -- dia dedicado ao Orixá Oxalá, simbolizando paz e harmonia na tradição que ela serviu por quase um século.
Repercussão
O prefeito de Salvador, Bruno Reis, lamentou a morte de Mãe Carmen do Gantois. “Com profundo pesar, Salvador se despede de Mãe Carmen do Gantois, uma mulher de muita sabedoria e amor ao próximo, cuja trajetória deixa um legado imenso de preservação da ancestralidade e de cuidado com as pessoas. Mãe Carmen seguirá como luz a guiar caminhos e a fortalecer nossa cidade, seguindo os passos de sua Mãe. Meus sentimentos à família, aos filhos e filhas de santo e a toda a comunidade do Gantois”, disse o prefeito.
A vice-prefeita e secretária municipal de Cultura e Turismo, Ana Paula Matos, também lamentou o falecimento de Mãe Carmen. Ela ressaltou que o legado de Mãe Carmen à frente de um dos mais antigos e fundamentais territórios de espiritualidade de matriz africana do Brasil orgulha Salvador e permanece vivo. “Que a espiritualidade abençoe todos amigos e familiares. A cidade de Salvador agradece sua passagem pela terra”, frisou.
"Mãe Carmen será lembrada sempre pelo seu legado de fé, espiritualidade e luta pelas religiões de matriz africana. É uma liderança religiosa que fortalece a nossa cultura e nossas lutas por igualdade. Tenho certeza de que seu legado será assegurado por filhas e filhos de santo, que seguirão na manutenção da tradição no Terreiro do Gantois", comentou o secretário estadual de Cultura, Bruno Monteiro.
