Brasil

País vive onda de violência
contra mulheres e de feminicídio

Manifestações estão sendo organizadas por coletivos feministas, ONGs e movimentos sociais

Foto: Ilustração Gemini IA
Em 2024 foram registrados mais de 1.600 feminicídios no país
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Crescem os protestos contra o feminicídio no Brasil após uma série de crimes brutais e recorde de casos em 2024. Manifestações e campanhas nas redes pressionam por políticas públicas, enquanto especialistas apontam falhas estruturais na proteção às mulheres e cobram respostas urgentes do Estado.

Uma sequência de feminicídios nas últimas semanas provocou uma reação nacional. Mulheres e aliados ocuparam ruas de diversas cidades brasileiras, organizando vigílias, caminhadas e atos públicos em frente a sedes de governos estaduais e prefeituras. 

O movimento ganhou força após a divulgação dos dados consolidados de 2024: foram registrados mais de 1.600 feminicídios no país, o maior número desde a tipificação do crime em 2015, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Apenas no primeiro semestre de 2025, o Brasil já contabiliza mais de 800 casos confirmados.

A indignação pública cresceu ainda mais após dois casos emblemáticos ocorridos em novembro: em São Paulo, uma jovem de 23 anos foi assassinada pelo ex-companheiro dentro de casa; em Brasília, uma mulher de 41 anos foi morta com sinais de tortura. Ambos os casos repercutiram amplamente nas redes sociais e na imprensa, sendo usados como símbolo da urgência da pauta.

Grito nas ruas e nas redes

As manifestações foram organizadas por coletivos feministas, ONGs e movimentos sociais, como a Marcha Mundial das Mulheres, a Rede Feminista de Juristas (DeFEMde) e a Articulação de Mulheres Brasileiras. Hashtags como #ParemDeNosMatar, #FeminicídioÉCrime e #JustiçaPorTodas ficaram entre os assuntos mais comentados no X (antigo Twitter) e no Instagram nas últimas 72 horas.

“Essas mortes não são casos isolados. São resultado de um sistema que continua tolerando a violência contra mulheres como se fosse parte da vida cotidiana”, disse ao G1 a socióloga e ativista Carla Mendes, uma das organizadoras do ato na Avenida Paulista.

Além das ruas, a pressão chegou aos gabinetes. Parlamentares da bancada feminina no Congresso anunciaram a intenção de retomar a tramitação de projetos parados que preveem o aumento de penas para agressores reincidentes, ampliação de casas-abrigo e financiamento obrigatório para patrulhas Maria da Penha em todos os estados.

Especialistas apontam falhas estruturais. Em 2023, menos de 40% dos municípios brasileiros possuíam centros de atendimento especializado a mulheres vítimas de violência, conforme dados do IBGE. Em regiões como o Norte e o interior do Nordeste, a assistência institucional é quase inexistente. Já o número de medidas protetivas de urgência cresce ano após ano, mas muitas não são efetivamente fiscalizadas.

Impacto nos lares e desafios do poder público

Enquanto as estatísticas disparam, famílias inteiras se desestruturam. Em entrevista à Folha de S.Paulo, Ana Cláudia Lima, irmã de uma vítima assassinada em Goiânia, desabafou: “Minha irmã pediu ajuda cinco vezes. A polícia dizia que não podia fazer nada porque ele não tinha descumprido a medida protetiva. Agora ela está morta”.

Governadores e prefeitos têm sido cobrados por omissão. Em nota oficial, o Ministério das Mulheres reconheceu a gravidade da situação e afirmou que estuda novas medidas emergenciais para conter os números alarmantes.

Entre as iniciativas anunciadas estão a ampliação do número de unidades da Casa da Mulher Brasileira em cinco estados e um plano de modernização da rede de enfrentamento à violência, com orçamento previsto de R$ 120 milhões em 2026.

Pesquisadores alertam, no entanto, que não basta apenas fortalecer as instituições -- é preciso um debate mais amplo sobre educação de gênero, masculinidade tóxica e desigualdade estrutural.

Desrespeitadas

Quase metade das mulheres brasileiras (46%) não é tratada com respeito no país. A sensação se repete em casa, no trabalho e, principalmente, nas ruas, onde 49% delas dizem que não são respeitadas. É o que mostra a 11ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, o maior levantamento do país sobre o tema, realizado pelo DataSenado e pela Nexus, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), do Senado.

A pesquisa ouviu mais de 20 mil mulheres em todas as regiões do país e revela que o machismo continua sendo regra e não exceção: 94% das entrevistadas classificam o Brasil como um país machista.

“Esse acompanhamento e atualização bienal dos dados permite que a gente mensure como está e o que tem mudado no país em relação à violência contra mulheres e a percepção sobre o tema. Ou seja, é essencial para apoiar senadores e governo na hora de criar e medir o sucesso de leis e políticas públicas de proteção às mulheres”, diz Marcos Ruben de Oliveira, coordenador do Instituto de Pesquisa DataSenado.

A percepção de que o Brasil é um país machista continua praticamente unânime entre as mulheres. Em 2025, 94% delas afirmam viver em um país machista, mesmo índice de 2023. O que mudou foi a intensidade: o grupo que considera o Brasil muito machista subiu de 62% para 70% em dois anos, o que representa 8 milhões de mulheres a mais com avaliação mais crítica sobre a desigualdade de gênero.

Desde 2017, o percentual nunca ficou abaixo de 90%, e apenas 2% das brasileiras dizem não ver machismo no país. O aumento da percepção de machismo caminha junto com a sensação de que a violência doméstica cresceu: 79% das mulheres acreditam que esse tipo de violência aumentou nos últimos 12 meses, retomando o maior patamar da série histórica.

Desde 2011, a rua é o ambiente mais mencionado como de maior desrespeito. Apesar de ter caído o número de mulheres com essa percepção entre 2023 e 2025, quase metade (49%) das entrevistadas ainda afirma que é nas vias públicas que elas ficam mais vulneráveis. Já a percepção de que o desrespeito é maior dentro de casa aumentou 4 pontos, o que corresponde a cerca de 3,3 milhões de mulheres a mais que passaram a ver o ambiente familiar como o lugar mais inseguro. No ambiente de trabalho, não houve alteração significativa, mas permanece como o segundo ambiente em que percebem que há menos respeito.

“Embora seja preocupante a percepção de que as mulheres não são respeitadas no círculo social mais íntimo, aquele que, em tese, deveria ser um espaço de proteção e acolhimento, isso vai ao encontro dos números altos de violência doméstica no país. Infelizmente, não é só a rua que apresenta perigo e desrespeito, conforme demonstram nossos altos índices de feminicídio”, afirma a antropóloga e líder de Políticas Públicas pelo Fim da Violência Contra Meninas e Mulheres do Instituto Natura, Beatriz Accioly.

Diferenças regionais

As diferenças na percepção de respeito também variam de acordo com a região do país. A pesquisa do DataSenado e da Nexus aponta que no Sul, por exemplo, 53% das mulheres afirmam que “às vezes” as mulheres não são tratadas com respeito, o maior índice entre todas as regiões. No Nordeste, metade das entrevistadas (50%) diz que as mulheres não são respeitadas. Embora sem diferença estatisticamente significativa em relação ao Nordeste, o Sudeste aparece logo em seguida, com 48% afirmando que as mulheres não são respeitadas, seguido do Centro-Oeste (44%) e do Norte (41%).

Apesar das variações, em todas as regiões, há uma presença significativa de mulheres que oscilam entre o respeito ocasional e o completo desrespeito, o que demonstra que o sentimento de instabilidade na forma como a sociedade trata as mulheres é generalizado. “Os dados ajudam a dimensionar como a violência contra a mulher deixa de ser um assunto restrito à esfera doméstica e passa a ser estrutural, com efeitos sociais e econômicos de longo prazo”, diz a coordenadora do Observatório da Mulher contra a Violência no Senado Federal, Maria Teresa Prado.

Quando os dados são analisados a partir do nível de escolaridade, o cenário revela desigualdades ainda mais profundas. Entre as mulheres não alfabetizadas, 62% afirmam que as mulheres não são tratadas com respeito, índice muito superior ao registrado entre as que concluíram o ensino superior (41%).

A percepção de respeito aumenta conforme cresce o nível de instrução, mas não desaparece completamente: mesmo entre mulheres com diploma universitário, apenas 8% dizem que as mulheres são plenamente respeitadas.

As maiores variações se concentram nas faixas com ensino médio e superior incompleto, em que mais da metade das entrevistadas afirmam que as mulheres são tratadas com respeito apenas às vezes, revelando que a escolaridade pode reduzir, mas não elimina, a percepção de desrespeito e machismo estrutural.

“O cruzamento entre escolaridade e percepção de respeito também mostra como as desigualdades educacionais se convertem em vulnerabilidade social. Mulheres com menor acesso à educação formal não apenas percebem mais situações de desrespeito, como também enfrentam maior dificuldade para denunciar ou acessar serviços de proteção”, analisa a diretora executiva da Associação Gênero e Número, Vitória Régia da Silva.

Reunião dos poderes

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou nessa segunda-feira (8) que pretende convocar uma reunião com representantes dos Poderes da República e de segmentos sociais para promover o que chamou de "mutirão educacional" de combate à violência contra as mulheres. Em meio a uma onda de casos de feminicídios que vêm chocando o país, milhares de pessoas em diversas cidades foram às ruas neste fim de semana para denunciar a violência e pedir liberdade, respeito e segurança para as mulheres brasileiras. 

"É importante envolver Congresso Nacional - Senado e Câmara -, a Suprema Corte, o Superior Tribunal de Justiça, os tribunais de Justiça dos estados, os sindicalistas, os evangélicos, é preciso todo mundo para gente fazer um mutirão educacional", afirmou Lula em discurso durante a 14ª Conferência Nacional de Assistência Social, que ocorre em Brasília.

O presidente não especificou uma possível data, mas que tentaria realizar o encontro até o fim deste ano.

"Nós temos que ficar indignados com a violência contra as mulheres", destacou o presidente, que voltou a mencionar casos recentes, como o episódio em São Paulo envolvendo Douglas Alves da Silva, de 26 anos de idade, que atropelou e arrastou Tainara Souza Santos, 31 anos de idade. O crime ocorreu no dia 29 de novembro. Ela teve as pernas amputadas após ter sido arrastada embaixo do veículo por cerca de 1 quilômetro, e segue internada em um hospital da cidade.

Lula também citou o caso do homem de 39 anos, preso em flagrante, no Recife, também no fim de novembro, acusado de provocar um incêndio que matou sua esposa, grávida, e os quatro filhos do casal.

"Combater o feminicídio, combater a violência, é uma tarefa das mulheres? Me perdoem, meus queridos homens, é uma responsabilidade nossa", disse Lula, que voltou a cobrar engajamento masculino na luta. 

"A verdade nua e crua é que a violência só tem um lado. Quem tem que mudar de comportamento não são as mulheres, são os homens", afirmou. 

O presidente disse que fará do combate à violência contra mulher sua luta política a partir de agora. "Aqui no Brasil nós vamos ter que criar um movimento. É um problema eminentemente educacional, vamos ter que aprender na escola, educar nossos filhos", completou.

Há uma semana, Lula tem abordado o tema da violência de gênero nos eventos oficiais que participa. Cerca de 3,7 milhões de mulheres brasileiras viveram um ou mais episódios de violência doméstica nos últimos 12 meses, segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero.