Nos últimos anos, o Brasil tem vivido um paradoxo inquietante: em nome da defesa da democracia, medidas vêm sendo adotadas que ferem frontalmente um de seus pilares fundamentais: a liberdade de expressão.
Essa contradição é cada vez mais perceptível quando se observa o comportamento de atores políticos, instituições e segmentos da sociedade civil que, sob o pretexto de combater a desinformação ou o “discurso de ódio”, promovem a censura, silenciam adversários e deslegitimam opiniões divergentes.
No epicentro desse debate estão as redes sociais e os fluxos descentralizados de informação que elas permitem.
Embora frequentemente apontadas como catalisadoras da polarização, essas ferramentas digitais têm servido como instrumentos fundamentais para a expressão plural de ideias -- algo que regimes autoritários sempre procuraram suprimir.
No livro Nexus: "Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial", o historiador Yuval Noah Harari oferece uma leitura provocativa sobre a relação entre tecnologia e democracia.
Segundo ele, “o diálogo democrático é ameaçado pela incapacidade de as pessoas ouvirem e respeitarem seus rivais políticos”, uma observação que se aplica com precisão à realidade brasileira atual.
Harari nos lembra que, ao longo da história, as democracias em larga escala só se tornaram possíveis com o advento das modernas redes de informação.
Antes disso, as formas de governo eram necessariamente limitadas a oligarquias, monarquias ou ditaduras, pois a gestão da opinião pública e da deliberação coletiva não era viável em populações vastas e dispersas.
Assim, longe de representarem uma ameaça, as redes sociais -- com todos os seus problemas e contradições -- são, segundo Harari, uma conquista democrática. Elas deram voz a milhões que, antes, eram excluídos do debate público.
Silenciar essas vozes sob a justificativa de "proteger a democracia" é, portanto, não apenas um erro estratégico, mas uma perversão do próprio ideal democrático.
O fenômeno da censura seletiva -- que pune determinados discursos enquanto tolera ou até promove outros -- tem ganhado força em países onde o Estado busca controlar narrativas. No Brasil, esse processo se manifesta de forma crescente por meio de decisões que criam um ambiente de medo, autocensura e vigilância.
O mais grave é que esse processo conta com o apoio de setores que se dizem defensores da democracia, mas que, na prática, promovem a intolerância à divergência. O que Harari identifica como “incapacidade de ouvir os rivais políticos” se traduz aqui na criminalização do dissenso e na demonização do contraditório. O resultado é um ambiente asfixiante, onde o diálogo cede lugar ao monólogo autorreferente das elites institucionais.
É importante destacar: o combate à desinformação é necessário e legítimo. Mas ele não pode servir de pretexto para suprimir opiniões incômodas ou restringir liberdades fundamentais. O verdadeiro teste de uma democracia está justamente em sua capacidade de conviver com a pluralidade, inclusive -- e sobretudo -- com as ideias que desafiam o status quo.
Os projetos autoritários contemporâneos já não dependem de tanques nas ruas ou de golpes clássicos. Eles se articulam por dentro das instituições, muitas vezes com o respaldo da opinião pública e de setores influentes da sociedade. A liberdade de expressão é o primeiro alvo desses projetos porque é ela que mantém vivo o espaço público de contestação.
A tentativa de concentrar o controle da informação em mãos de poucos -- seja por meio de agências reguladoras, de tribunais ou de “filtros algorítmicos” -- revela o desejo de domesticar o debate público. É a lógica do “controle social da mídia” disfarçada de bem comum.
Quando se permite que o Estado decida o que pode ou não ser dito, rompe-se o pacto democrático. E, como mostra a história, dificilmente esse poder se restringe apenas a casos extremos. Ele tende a se expandir, alcançando críticos, jornalistas, pesquisadores e cidadãos comuns.
A defesa da liberdade de expressão não é uma bandeira da direita nem da esquerda -- é a base estrutural da convivência democrática. Sem ela, todas as demais liberdades tornam-se vulneráveis. O alerta de Yuval Harari é claro: democracias não sobrevivem à intolerância deliberada com o contraditório. A democracia exige escuta, respeito e abertura para o conflito civilizado.
No Brasil, é urgente retomar o compromisso com o pluralismo. Isso significa garantir que todos, independentemente de suas posições políticas, possam se expressar sem medo de retaliação institucional. Significa, também, fortalecer os mecanismos de responsabilização contra abusos, sem recorrer à censura como atalho.
A democracia não se defende com silenciamento. Ela se fortalece com debate, com argumentos, com informação. E, sobretudo, com a coragem de ouvir o que não se quer ouvir.
