No quarto dia de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luiz Fux votou pela nulidade da ação penal, ofertando, assim, um guarda-chuva de proteção para os réus do “núcleo crucial” da trama golpista. E mais: na análise do mérito, forneceu acessórios adicionais de defesa, pedindo, entre outras coisas, a absolvição de todos os réus do crime de organização criminosa – incluindo Jair Bolsonaro, inocentado de todas as acusações a ele imputadas.
Foi a melhor defesa oral dos réus (a título de garantir seus direitos).
Num voto de mais de 10 horas, controverso, Fux formou maioria para condenar Mauro Cid por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e, a um só tempo, validar a delação premiada do réu. Mas pediu a retirada de todas as acusações contra Alexandre Ramagem – isso, depois de ter validado, meses atrás, a ação contra o deputado federal (PL-RJ), acusado de ter usado a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para monitorar autoridades.
Anulação. Para justificar o pedido de “nulidade de todos os atos praticados” pela corte suprema, o ministro arguiu a incompetência do STF para julgar a ação e o cerceamento de defesa – nesse último caso, encampando a tese dos advogados dos réus, de comprometimento da “paridade de armas” do devido processo legal. Motivo: o curto espaço de tempo para a análise das provas enviadas aos advogados, que chamou de “tsunami de dados”.
Fazendo uso de citações filosóficas, jurisprudências e normas constitucionais, legais e supralegais, Luiz Fux dissertou sobre a incompetência da primeira turma do STF para julgar a ação penal, porque os réus já não estão investidos de seus cargos, e, portanto, não mais teriam direito ao foro privilegiado da suprema corte – o que obrigaria a condução do processo pela primeira instância da Justiça.
Abre parêntese: a Constituição de 88 determina que somente autoridades com foro privilegiado devem ser julgadas pelo STF. Entretanto, na regulamentação do dispositivo constitucional, a corte suprema decidiu que quando os crimes forem cometidos quando os agentes públicos ainda estiverem no exercício dos cargos, a prerrogativa do foro permanece, mesmo depois de terem deixado seus postos. Fecha parêntese.
Fux valeu-se, porém, do argumento de que o STF definiu a questão da prerrogativa do foro em data posterior ao cometimento dos crimes, o que justificaria a anulação do processo. E argumentou que, mesmo sob o entendimento de que os réus estão sendo julgados por atos cometidos quando ainda investidos nos cargos, e em razão das funções, a ação deveria ser conduzida pelo plenário da corte, e não pela primeira turma.
Fez uso de arcabouço técnico para revestir seu voto do rigor científico, destituído de politização e diferenças ideológicas que reiteradamente exigiu dos pares. Mas, seguindo a linha filosófica do ministro, é importante lembrar o que diz, entre outros, Michel Foucault. Em sua “Microfísica do poder”, o filósofo francês demonstra que mesmo enunciados científicos carregam, a despeito de sua sempre evocada assepsia, sistemas de ideias, valores, opiniões, crenças – ou ideologias.
E elas escorrem por entre as palavras e condutas de Luiz Fux, que condenou invasores das sedes dos três poderes, em 08/01, na mesma corte, sem arguir a incompetência ora sustentada para pedir a anulação do processo contra réus com maior visibilidade e poder, e, concomitantemente, garantir absolvição ou penas suaves para alguns dos acusados do “núcleo crucial”, na hipótese (provável) de não conseguir que o STF acolha a tese da nulidade da ação penal.
Um rastro: o ministro pediu a condenação do ajudante de ordens do então presidente da República por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, mas defendeu a absolvição de Jair Bolsonaro pelo mesmo crime, com argumentos próximos à ideia de que os réus aqui em foco e os vândalos do 08/01 agiram por conta própria, sem coordenação e sem financiamento, ignorando todas as provas em sentido contrário apresentadas na peça acusatória.
Caixa de ferramentas jurídicas: Fux concentrou esforços no sentido de fragmentar os atos preparatórios e executórios do plano golpista, para sustentar a ideia de eventos desarticulados e sem liderança – metodologia diametralmente oposta à usada pela Procuradoria-Geral da República e pelo relator da ação, Alexandre de Moraes. Para tanto, fez uso de sua caixa de ferramentas profissionais, ou, para usar suas palavras, de “técnicas jurídicas”.
Aqui, mais uma vez, torna-se relevante citar teóricos, como os pesquisadores Armand Mattelart e Michèle Mattelart, que alertam para a importância de se pensar para além dessas caixas ferramentais, construídas, muitas vezes, para aliviar tensões via soluções pretensamente técnicas, ou legitimar estratégias e modelos desejados. E pensando para além da caixa de ferramentas apresentada pelo ministro, não é possível evitar estranhamentos.
Na digressão teórica, Fux produziu comparações esdrúxulas, como entre a perseguição a bruxas e a persecução penal em foco. Buscando ajustar as acusações aos tipos penais existentes, misturou crimes de gangues de loterias com os estabelecidos na ação. E no apanhado em favor de Jair Bolsonaro, reduziu a trama articulada e publicamente verbalizada pelo réu a “bravatas” sem consequências, proferidas sob a égide do direito à livre expressão...
Consequências: É improvável, que a anulação do processo passe na suprema corte, mas o voto de Luiz Fux terá consequências inevitáveis nas esferas técnica e política – embora, nesse caso, não haja separação cirúrgica entre uma e outra. No âmbito mais próximo ao técnico, deve impactar a dosimetria das penas, servir de base para recursos de defesa (em cortes internacionais), estimular revisão de condenações etc.
As consequências mais nefastas, porém, se darão no âmbito político. Em curto prazo, fornecendo combustível para alimentar a fogueira da anistia acesa no Congresso e, em médio e longo prazos, fortalecendo uma corrente político-ideológica que trama contra a democracia para se perpetuar no poder – ainda que às custas da eliminação pura e simples de seus adversários. Lamentável, sob todos os aspectos.
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Suzana Varjão é jornalista e escritora