O periquito-cara-suja (Pyrrhura griseipectus) uma das aves endêmicas do Ceará, tem um novo capítulo em sua história. Depois de 114 anos sem registros da espécie na região do Planalto da Ibiapaba, a Reserva Natural Serra das Almas (RNSA), entre o Ceará e o Piauí, se tornou o palco de uma reintrodução histórica.
Em dezembro passado, 18 exemplares foram soltos, o que simboliza não apenas uma reparação ecológica, mas também um esforço conjunto para restaurar a biodiversidade na região e promover a preservação do bioma Caatinga.
Além desses, outros três indivíduos da mesma espécie, que foram apreendidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foram enviados aos cuidados do Arvorar, para acolhida, atendimento e avaliação por biólogos, veterinários, zootecnistas e outros especialistas, para posterior translocação à RNSA, onde passarão pelo processo de aclimatação para posterior soltura no ambiente natural.
A ação é parte do projeto Refaunar Arvorar, uma parceria entre o Parque Arvorar, do Beach Park; a Associação Caatinga; e a Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis). Com o apoio de organizações como a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e o Ibama.
O esforço também faz parte do Plano de Ação Nacional para Conservação das Aves da Caatinga, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). O projeto busca repovoar a fauna local com espécies nativas que correm risco de extinção, com destaque para o periquito-cara-suja, que esteve ausente da Serra das Almas por mais de um século.
A reintrodução do periquito-cara-suja na Serra das Almas marca uma reparação histórica, não só para o Ceará, mas para o próprio bioma Caatinga. Fábio Nunes, biólogo e gerente do projeto de conservação liderado pela Aquasis, explica que a extinção local da espécie foi resultado de uma combinação de fatores, com destaque para a ação humana: “O cara-suja foi extinto localmente em mais de 25 áreas, muitas das quais não possuem mais o ambiente adequado para sua sobrevivência”.
Segundo ele, a caça seletiva e a captura de animais, práticas comuns desde o século XVIII, aceleraram o declínio da espécie. “Na época, leis obrigavam os lavradores a matar animais de ‘bico torto’, como o cara suja, e outras espécies de psitacídeos também desapareceram devido a essa prática”, acrescenta.
O historiador Antônio Bezerra, que visitou a região de Barrocão, que hoje é o município de Tianguá, na década de 1890, descreveu o cara-suja e mencionou que ganhou um animal de bico torto, que estava em cativeiro. Esse fato indica que, na época, o animal já era alvo de captura e tráfico.
Após mais de 100 anos sem registros do periquito-cara-suja na Serra das Almas, a sua reintrodução representa uma vitória para a conservação da fauna local.
“Esse processo de reintrodução é a chance de corrigirmos uma falha histórica. Estamos trabalhando para devolver a espécie à Serra das Almas e restabelecer o equilíbrio ecológico que foi perdido ao longo do tempo”, comenta Gilson Miranda, gestor da Reserva Natural Serra das Almas.
Com uma área de 6.285,38 hectares, a Serra das Almas é considerada a maior Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Ceará e é reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como o primeiro Posto Avançado da Biosfera da Caatinga, desde 2005. Essa região, situada entre os municípios de Crateús (CE) e Buriti dos Montes (PI), é fundamental para a preservação da fauna e flora locais, além de abrigar quatro nascentes de importância crucial para os ecossistemas da região.
A escolha da Serra das Almas para a reintrodução do periquito-cara-suja não foi por acaso. A Reserva, com seu ambiente preservado e resiliente, oferece as condições ideais para a adaptação das aves.
“A Serra das Almas é uma área fundamental para a conservação da Caatinga. Ela possui um ecossistema intacto e oferece o refúgio necessário para muitas espécies ameaçadas”, afirma Gilson Miranda, que também destaca a importância das parcerias com outras organizações, como a Associação Caatinga e a Aquasis, na implementação do projeto.
Aclimatação e soltura
As aves foram selecionadas por estarem acostumadas ao uso de caixas-ninho, o que facilita o manejo durante o processo de soltura | Foto: Fábio Nunes
A seleção dos indivíduos para a reintrodução na Serra das Almas seguiu os critérios rigorosos utilizados na soltura realizada na Serra da Aratanha, em uma ação de reintrodução semelhante realizada em 2022.
Dentre os requisitos, destaca-se o pertencimento dos animais a grupos familiares de vida livre, o que favorece a coesão social e facilita a adaptação ao novo ambiente.
Além disso, as aves foram selecionadas por estarem acostumadas ao uso de caixas-ninho, o que facilita o manejo durante o processo de soltura.
Outro aspecto importante foi o treinamento prévio para o uso de comedouros, uma preparação fundamental para a aclimatação gradual e bem-sucedida ao habitat natural.
“Em relação à reintrodução da espécie, 28 indivíduos foram levados para a Serra das Almas, sendo que 18 foram soltos recentemente. O processo de aclimatação é monitorado com muito cuidado, como aconteceu na Serra da Aratanha, onde os indivíduos dispersaram após a soltura, mas retornaram no dia seguinte. Esse acompanhamento é crucial para garantir a adaptação à nova área”, detalha Fábio Nunes.
O sucesso da reintrodução do periquito-cara-suja não é fruto do acaso. Antes da soltura, as aves passaram por um rigoroso processo de aclimatação, que durou cinco meses. Durante esse período, os exemplares foram mantidos em recintos dentro da reserva, onde puderam se familiarizar com o ambiente e estabelecer vínculos familiares, o que é fundamental para garantir o sucesso da reintrodução.
Segundo Fábio Nunes, essa preparação é essencial para aumentar as chances de adaptação das aves ao novo habitat. “Os periquitos foram escolhidos com base em critérios rigorosos, como o fato de pertencerem a grupos familiares de vida livre. Isso facilita a adaptação e garante maior coesão social dentro do grupo”, explica.
Parcerias para o futuro da Caatinga
O projeto Refaunar Arvorar não se limita à reintrodução do periquito-cara-suja. Leanne Soares, gerente do Parque Arvorar, revela que outras espécies ameaçadas de extinção, como o papagaio-verdadeiro, a arara-vermelha, o flamingo, emas e guarás, estão sendo consideradas para futuras reintroduções.
“Nosso objetivo é criar um impacto positivo na biodiversidade local e, para isso, precisamos garantir a continuidade do nosso trabalho de conservação”, afirma Leanne. Ela destaca que o Parque foi projetado com o propósito de “inspirar para conservar”, e a reintrodução das aves nativas é uma das formas de alcançar esse objetivo.
Além disso, o Parque tem se empenhado em promover a Educação Ambiental e engajamento comunitário, com a expectativa de que suas ações inspirem as pessoas a entenderem o papel crucial que elas desempenham na proteção do meio ambiente.
“A Educação Ambiental é a chave para a preservação do nosso patrimônio natural. Queremos que as pessoas se sintam conectadas à natureza e entendam a importância de proteger nossa biodiversidade”, explica Leanne.
Desafios e perspectivas
Embora comemorem os resultados, os especialistas se preocupam com a ausência de áreas protegidas em alguns locais de onde a espécie desapareceu e poderia ser reintroduzida | Foto: Fábio Nunes
O biólogo reforça a importância da criação de Unidades de Conservação nesses pontos de ocorrência da espécie. “A ampliação dessas áreas protegidas é fundamental para garantir a segurança das populações de cara-suja e de outras espécies ameaçadas”, conclui.
Embora o projeto de reintrodução tenha sido um grande sucesso, muitos desafios ainda precisam ser superados para garantir a sobrevivência a longo prazo das espécies ameaçadas. Fábio Nunes ressalta que, apesar do crescimento da população de periquitos-cara-suja, a espécie ainda enfrenta riscos devido à degradação ambiental e à ação humana. “A extinção de algumas espécies acontece de forma gradual, e em locais como Quixadá, onde não há uma Unidade de Conservação e o ambiente não é protegido, o futuro do cara-suja é incerto”, alerta.
Conservação do cara-suja no Ceará
Muito antes dessas ações de reintrodução da espécie em áreas onde historicamente já houve a ocorrência, como foi o caso da Serra da Aratanha, e agora da Serra das Almas, os esforços para salvar o periquito-cara-suja, teve início anos atrás, no Maciço do Baturité, onde hoje há um incremento significativo de população da espécie.
Fábio Nunes relembra que antes das ações de conservação no Maciço do Baturité, contava-se com uma população de 250 indivíduos, o que classificou a espécie como criticamente ameaçada, à época. Atualmente a situação da espécie no Ceará é bastante positiva, com um crescimento significativo na Serra de Baturité. Recentemente, o censo de população da espécie realizado no local indicou 1.238 indivíduos, um aumento de 40% em relação ao ano anterior, o que é um excelente resultado, possibilitando a criação de novas populações.
“A Serra de Baturité tem se mostrado uma área crucial para a conservação do cara-suja, pois, em parte, a presença humana foi limitada devido à posse de grandes propriedades. Isso ajudou a proteger a espécie. O projeto de conservação focou na Serra de Baturité com a meta de evitar a extinção local. Embora a população tenha crescido, a situação ainda é arriscada, pois a área está isolada e há muitos riscos associados ao contato com humanos, animais domésticos e exóticos, além de ameaças como incêndios, seca e doenças”.
A partir do ano de 2017 a situação do cara-suja foi melhorada e ele saiu da lista de “criticamente ameaçado”, mas para garantir sua sobrevivência a longo prazo, se fez necessário fundar novas populações em áreas seguras e com clima adequado. Um exemplo é a Serra das Almas, que, embora seja uma área de Caatinga, é resiliente por ser uma floresta intocada. Ali está presente do vira-folha, uma espécie de ave que coexiste com o cara-suja, sendo mais um indicador de um ambiente propício para a espécie.
Nunes relata que, durante expedições realizadas pelos pesquisadores, foram identificados vestígios históricos da presença do cara-suja, como a coleta de espécimes por uma historiadora natural em 1910 na região da Ibiapaba. Esses registros e entrevistas etnobiológicas indicam que a espécie já ocorreu em áreas além da Serra de Baturité, como em Maranguape e Pacatuba (Serra da Aratanha), na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), no Cariri e em outras regiões.
A partir dessas informações, o projeto também pretende ampliar as ações para o Parque Nacional de Ubajara, a Serra de Maranguape e o Cariri, além de duas novas áreas em estudo.
A meta é ter pelo menos 11 populações de cara-suja, com boa variabilidade genética, incluindo uma população na Bahia. Entretanto, a conservação do cara-suja depende de áreas protegidas e da conscientização das comunidades locais. Em locais como Quixadá, a ameaça vem da degradação provocada pela extração de carvão e outras pressões humanas. A ideia é incentivar a criação de áreas protegidas para garantir a segurança das populações de cara-suja.
Além da Serra de Baturité, e da Serra da Aratanha, há pequenas populações em outras áreas cearenses como em Quixadá, Ibaretama, Canindé, Itapajé e a Serra da Ibiapaba. Essas áreas têm se mostrado promissoras para a expansão da espécie. “A reintrodução em outras áreas continua sendo um desafio, com um foco em locais onde o ambiente já foi historicamente favorável à espécie. Como exemplo, a Serra das Almas e o Cariri, que possuem áreas protegidas e Unidades de Conservação que garantem a segurança para a espécie”.