Opinião

Coisinha bonitinha da Matemática

Vale ouro, representa um tesouro, além de ser muito formoso, da cabeça aos pés

Na Bahia há graça até em pequenos detalhes. Por exemplo, ao chamar alguém de quem não se lembra o nome de coisinha.

- Ô, coisinha! É, você mesmo! Venha aqui...

- E aquele(a) coisinha? Como é mesmo o nome dele(a)?...

O que há de curioso neste jeito singular de falar é que reflete um conceito matemático dos mais importantes e mais discutidos em sala de aula, sem que se perceba.

Você faz ideia do que seja?

A história não é curta, sequer simples. De fato, é cheia de idas e vindas, como boa parte da história oral, condicionada a boas estórias.

Bons e antigos livros de matemática tratavam do desconhecido numa equação, ou fórmula, por meio de uma variável denominada xis, ou ainda, duas barrinhas cruzadas, simbolizada pela letra x do alfabeto.

Um dos livros de maior destaque no mundo, e particularmente no Brasil, que chegou nas primeiras caravelas lusitanas, é da lavra do médico e matemático português Pedro Nunes (1502 - 1578), personagem importante no desenvolvimento das grandes navegações em sua época.

Nunes foi um dos primeiros a utilizar a notação de xis para coisa, significando uma incógnita, ou seja, algo não conhecido. 

Entre suas grandes obras destaca-se o “Livro de Algebra en Arithmetica y Geometria” (1567), que disseminou as notações algébricas dos matemáticos italianos Luca Pacioli (1445 - 1517) e Niccolo Tartaglia (1500 - 1557), bem como o sistema de numeração hindu-arábico que conhecemos hoje, utilizando dos símbolos 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9.

O livro de Nunes foi muito difundido no Brasil, em especial no Colégio dos Jesuítas da Bahia (1553 - 1759), instituição de ensino superior mais antiga das Américas com o curso de Teologia e Ciências Sagradas, e que continha uma cátedra de matemática. Tal curso tinha grande atividade e enorme influência, inclusive além-mar, sendo que a sua biblioteca, situada no Terreiro de Jesus da cidade do Salvador, Bahia, chegou a ter cerca de três mil volumes.

Particularmente, em livros como esse de Nunes eram tratados problemas do tipo: “o dobro de um número (x) mais um é igual a sete. Que número é esse?” Pode-se interpretar a mesma questão de outras maneiras, como por exemplo: “qual é o número cujo dobro dele, somado da unidade, resulta em sete?”

O rótulo x tem mais de uma origem. Uma delas remete a célebre brincadeira de esconder algo em uma das mãos e pedir que alguém adivinhe em qual delas está, sendo que ambas são apresentadas ao se cruzar os braços, formando um xis, que está vinculada a uma mais antiga brincadeira em árabe chamada shay, que significa coisa. Muitas crianças brincam pedindo para adivinhar em que mão fechada está escondida alguma coisa, sendo apresentadas as duas mãos cruzando-se os braços.

Cada geração requer maneiras novas de se introduzir assuntos, e não seria diferente de fazê-lo quando o assunto é matemática. Pode-se apresentar então um problema qualquer do tipo “qual é o número” e denominá-lo de coisa, ou mesmo de coisinha, pois a letra xis é simples, elegante e pequena, e tentar adivinhá-lo de forma lúdica como no exemplo acima.

É preciso dar mais valor ao que se é ensinado em salas de aula. O papel de todo(a) professor(a) é altamente relevante, não somente por mostrar as primeiras letras e números, as frases e versos, textos e contas, padrões e formas a diversos(as) discentes. É um trabalho paciente, meticuloso, dedicado e repleto de amor, como de fato é qualquer atividade humana que tenha o nobre propósito de educar mentes.

Docentes de grande sucesso ilustram suas aulas de diversas formas, e no caso em questão seria possível introduzir o conceito de variável desconhecida, o famoso x, como uma brincadeira de esconder algo em uma das mãos.

O símbolo mais usado enquanto variável matemática tambem serviu para identificar uma das mais importantes e prestigiosas escolas de engenharia do mundo, a francesa École Polytechnique, conhecida por “lX” (lê-se ‘lix’), para o que há duas explicações diferentes e comumente aceitas. A primeira vem de seu brasão, em que podem ser vistos dois canhões cruzados que tomam a forma de um X. A segunda vem do reconhecimento da proeminência da matemática na formação de seus alunos desde sua fundação, em 1794, ao receber o nome atual do imperador Napoleão Bonaparte (1769 - 1821) onze anos depois.

Por fim, é possível associar tal brincadeira a uma conhecida canção brasileira, um samba de enorme sucesso intitulado “Coisinha do Pai”, composto pelos sambistas brasileiros Jorge Aragão da Cruz (n. 1949), Almir de Souza Serra (mais conhecido como Almir Guineto, 1946 - 2017) e Luiz Carlos Evangelista de Souza (ou Luiz Carlos Xuxu, ? - 2019) em 1979, e imortalizada na voz da cantora, compositora e instrumentista brasileira Elizabeth Santos Leal de Carvalho (1946 - 2019), conhecida como Beth Carvalho.

Assim, pode-se propor que todo xis poderia ser visto, na ótica das crianças e jovens, como uma coisinha bonitinha da matemática, pois vale ouro, representa um tesouro, além de ser muito formoso, da cabeça aos pés, e que se deve agradecer a Deus por que lhe fez.

Ouça
Coisinha do Pai | Beth Carvalho

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Marcio Luis Ferreira Nascimento é professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e membro associado do Instituto Politécnico da Bahia