De tanto avistar aves migratórias e admirar a beleza delas pelas praias de Icapuí, no litoral leste do Ceará, o artesão local conhecido como José da Baiana passou a reproduzir réplicas em madeira e resina das espécies que ocorrem no lugar. A arte de esculpir aves foi então passada para sua filha e seu genro, que levam seu legado adiante: gaivotas, maçaricos e trinta-réis estão cada vez mais presentes nas representações dos artesanatos produzidos e vendidos na cidade litorânea.
“Meu pai nos criou fazendo essas peças em madeira e resina, começou fazendo baianas de búzios, mas depois criou gosto pelas aves migratórias que a gente vê aqui. Agora eu e meu esposo também fazemos esses artesanatos”, explicou a artesã Natália Ventura, enquanto mostrava os detalhes de um maçarico-de-papo-vermelho recém esculpido por ela. Pinturas, chaveiros e outras formas de arte também são produzidas com imagens das aves, em Icapuí. As paredes da Casa de Cultura do município estampam desenhos e pinturas feitas por crianças de todas as idades, que usaram das mais diversas formas criativas para representar as aves migratórias com quem dividem a natureza.
Essa relação da comunidade local com as espécies de aves migratórias que ocorrem especialmente no Banco dos Cajuais de Icapuí, vem sendo incentivada pelo trabalho da Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis), que desde 2003 atua na região com o propósito de conservar essas aves e seus habitats. Apresentadas pela filha de José da Baiana, as espécies esculpidas estiveram expostas durante o III Festival de Aves Migratórias do Banco dos Cajuais, realizado no fim de 2023, como uma iniciativa da Aquasis, com o patrocínio do Programa Petrobras Socioambiental e o apoio da Prefeitura Municipal de Icapuí.
“Não existe projeto de conservação sem o engajamento comunitário. É muito importante que a população tenha o pertencimento da causa e conheça as espécies. Lembro que, no primeiro festival, as pessoas vieram, curtiram, mas ainda não estavam entendendo bem, hoje em dia abraçam as aves migratórias. Contamos com a presença forte das escolas, marisqueiras, artesãos, comerciantes, proprietários de pousadas, e de toda a comunidde que está cada vez mais envolvida nesse processo de conservação”, ressalta Felipe Braga, coordenador de educação ambiental do Programa Aves Migratórias (PAM) da Aquasis.
O encontro reuniu atividades voltadas ao turismo de observação de aves, embarque científico, imersões à paisagens cênicas locais, educação ambiental, limpeza de praia, além de exposições, apresentações artísticas, oficinas e palestras que trouxeram à tona as mais recentes discussões sobre a conservação das aves migratórias e limícolas na região, reconhecida como Sítio da Rede Hemisférica de Reserva para Aves Limícolas de importância regional, sendo o terceira a ser reconhecido no Brasil.
Em uma das exposições, um falcão-peregrino taxidermizado e exposto pela equipe do Museu de História Natural do Ceará Professor Dias da Rocha, ajudava a ilustrar a capacidade de migração de algumas espécies de aves. O espécime morreu por colidir em uma vidraça, em Fortaleza (CE), mas registros encontrados a partir de uma anilha que o falcão carregava, revelou que a ave nascera em Brooks Range, uma cordilheira que se encontra no norte do Alasca. O falcão-peregrino viajou em linha reta por 11.350 km, até chegar ao Ceará.
Trajetórias semelhantes são traçadas anualmente por um incontável número de aves migratórias e limícolas que nascem no hemisfério norte, e que para fugir dos rigorosos invernos polares viajam ao longo da zona costeira, por mais de 30.000 Km, entre áreas de reprodução, alimentação e descanso. Essas aves encontram refúgio no Banco dos Cajuais, um ambiente costeiro onde a água do mar recua diariamente mais de quatro quilômetros, formando uma área onde milhares de aves migratórias vêm se alimentar.
Com o recuo da água na maré baixa, revela-se uma imensa área repleta de nutrientes. Ali as aves migratórias encontram seus alimentos prediletos: moluscos, mariscos, mexilhões, poliquetas e pequenos crustáceos. “Essa é a principal explicação para a ocorrência de concentrações tão grandes de aves migratórias no Banco dos Cajuais”, explica Jason Mobley, gerente de Projeto do PAM. Além disso, esse ecossistema possui grande relevância ecológica e é reduto do Maçarico-de-Papo-Vermelho (Calidris canutus), espécie criticamente ameaçada de extinção.
A raridade das espécies de aves ameaçadas que ocorrem nesse rico ambiente costeiro marinho vem atraindo o olhar dos observadores de aves, para além das grandes falésias, mar calmo, piscinas naturais, salinas, restingas e manguezais que compõem o lugar. Icapuí é considerado como um dos principais pontos da rota do turismo de observação de aves do Ceará e atrai pessoas de todas as partes do Planeta para avistar cerca de 34 espécies de aves migratórias que ocorrem no lugar anualmente.
Além do maçarico-de-papo-vermelho, o lugar também é reduto de espécies ameaçadas como maçarico-de-costas-brancas, maçarico-rasteirinho, batuíra-bicuda e trinta-réis-róseo. A bióloga e analista ambiental da Aquasis, Thaís Camboim, em parceria com o grupo Passariminas, conduziu uma turma pela Trilha do Olho D’Água, na Área de Proteção Ambiental da Praia de Ponta Grossa, e destaca:
“Ponta Grossa é uma área muito importante para as aves costeiras de Icapuí, principalmente a batuíra-bicuda (Charadrius wilsonia), espécie ameaçada de extinção que se reproduz na região. Levar pessoas para conhecerem as aves e se encantarem com suas belezas e comportamentos únicos é o primeiro passo para conseguirmos reduzir o risco de extinção dessa e de outras espécies costeiras ameaçadas. E sempre ficamos emocionados com o sorriso no rosto de quem vê essas aves pela primeira vez ‘de pertinho’ ao usar um binóculo ou luneta ornitológica”.
Para a bióloga e mestranda em Zoologia no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Aline Ariela Passos, participar de um evento como esse que envolve várias pessoas que amam as aves migratórias é incrível e inspirador. “Foi uma grande oportunidade para compartilhar nossos conhecimentos e motivar mais pessoas a iniciarem esse hobby que é a observação de aves”.
Rômulo Guerra é um observador de aves cearense que atua há mais de oito anos como guia de observação, tanto que possui uma relação especial com as aves migratórias que frequentam Icapuí. Além de perpetuar as aves em suas fotografias, Guerra contribui para a conservação e para a ciência cidadã ao trocar informações com cientistas que pesquisam sobre o tema.
“Começamos eu e a minha filha, Ana Clara Guerra, a acompanhar essas aves que passam no litoral cearense. Desde então, venho me aprimorando com relação à identificação das espécies e comportamentos, trocando conhecimentos e experiências com os pesquisadores do Projeto Aves Migratórias da Aquasis. Aprendo muito com eles, inclusive sobre dicas de como devemos proceder durante a prática da observação de aves para respeitar os espaços desses animais, que passamos adiante”.
Ameaçadas pela geração de energia
“Quando a gente fala em animal marinho, qual vem à sua mente?”. Essa foi a pergunta feita por Rafael Revoredo, biólogo do Centro de Estudos e Monitoramento Ambiental (Cemam), ao provocar a reflexão de que as aves costeiras também devem ser consideradas animais marinhos.
“Pensamos em baleias, tubarões, golfinhos e em pinguins, que são aves que estão fora da nossa realidade no Nordeste. Mas nunca incluímos as aves migratórias entre esses animais carismáticos do mar”. O cientista expôs, durante o III Festival de Aves Migratórias, dados de suas pesquisas sobre os impactos negativos causados pelas linhas de transmissão de energia sob as aves costeiras, em Galinhos, no Rio Grande do Norte, a 127 Km de distância de Icapuí (CE).
O estudo teve início quando muitas aves começaram a aparecer mortas, feridas ou com as asas quebradas, na Península de Galinhos, com o agravante de que a principal espécie atingida era o trinta-reis-róseo (Sterna dougallii), ave ameaçada de extinção em todo o mundo. “Inicialmente não entendemos bem qual era a origem desse problema até que observamos que as aves estavam aparecendo em frente a uma linha de transmissão de energia”, explica. A partir disso, surgiram os primeiros esforços em buscar uma solução para o problema.
Entre 2014 e 2017, morreram 150 dessas aves, com um grande pico em 2017, quando foram registradas 110 ocorrências. De acordo com o pesquisador, esse problema pode estar relacionado à construção de um parque eólico nas proximidades, que reduziu os habitats das espécies e culminou na mudança das rotas das aves, fazendo com que elas se aproximassem ainda mais das linhas de energia.
Em um esforço conjunto entre cientistas brasileiros, estadunidenses e canadenses, a solução encontrada foi a instalação de sinalizadores nos fios de energia para orientar as aves e evitar as colisões. A partir da instalação desses sinalizadores nos fios pôde-se observar a redução de ocorrências dessas colisões.
“Já observamos uma redução expressiva de colisões, e esperamos que este ano haja um número ainda menor. Mas o problema ainda existe. Nossa presença na região fez com que a gente encontrasse outras linhas onde esses animais também estão colidindo e que a gente passou a monitorar também. Na medida em que avançamos no monitoramento, avançamos também na instalação dos sinalizadores”.
Tecnologia para a conservação
Uma nova tecnologia foi recentemente adotada pelo Programa Aves Migratórias com o objetivo de aprofundar estudos sobre a ecologia e comportamento migratório das aves limícolas que habitam o litoral das regiões Norte e Nordeste do País: a utilização de transmissores de rastreamento, que são instrumentos utilizados para estudar o comportamento e ecologia dessas aves limícolas, além de acompanhar suas tendências populacionais.
Com o equipamento é possível visualizar os movimentos locais e trajetórias das aves. A partir da ajuda de uma nova tecnologia de aparelhos com uma pequena placa solar e uplink de satélite baseado no sistema de posicionamento global (GPS), a pesquisa pretende fornecer coordenadas mais precisas que ajudarão a mapear as rotas migratórias das aves e locais relevantes para a espécie que servem de alimentação e descanso.
O equipamento revela a posição exata percorrida e mostra que eles voam por uma grande parte da América do Norte e Sul. Alguns permanecem por um tempo prolongado no Ceará para comer e descansar”, destaca Rafael Becker, agente de Planejamento do PAM.
Os dados coletados a partir da implantação dessa tecnologia irão auxiliar as estratégias de conservação das espécies, além de orientar investimentos para proteger áreas importantes em todo o hemisfério e contribuir para a ciência e preservação ambiental. A iniciativa contou com a presença e colaboração da pesquisadora Julie Paquet, especialista em aves limícolas do Environment and Climate Change Canada / Canadian Wildlife Service, reconhecida pelos esforços ao longo de sua trajetória com a conservação dessas aves na região Atlântica do Canadá.
O Programa Aves Migratórias (PAM) atua num conjunto de ações dedicadas à pesquisa aplicada, educação ambiental e engajamento de políticas públicas executadas estrategicamente para a conservação de aves migratórias costeiras e residentes ao longo da Rota Migratória do Atlântico Ocidental. Atualmente a iniciativa possui atuação ao longo da Costa Semiárida do Nordeste nos estados do Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte e expande suas estratégias de conservação a importantes áreas prioritárias para aves limícolas, que incluem a costa do Maranhão e a região norte do Brasil, nos estados do Pará e Amapá.