Depois de trombar na internet com a gravação de um show particular feito para um cliente no Camera Prive, Carla recebeu um balde de água fria ao questionar a plataforma, um dos mais conhecidos sites de conteúdo adulto do país, sobre o vazamento do vídeo com suas imagens.
Ao cobrar mais segurança nas transmissões, a camgirl – como é chamada a profissional que realiza performances eróticas – conta que a empresa se limitou a solicitar a derrubada do vídeo pirata ao servidor responsável, argumentando que não poderia fazer nada além disso. “O Camera Prive não se importa o suficiente para evitar o problema”, critica Carla, que prefere usar um pseudônimo por medo de retaliações.
Assim como ela, produtores de conteúdo adulto – em sua maioria, mulheres – vêm sendo vítimas cada vez mais frequentes de fóruns de internet criados para vazar fotos, vídeos e até mesmo informações pessoais de quem abre perfis em plataformas como a brasileira Camera Prive e a mundialmente conhecida OnlyFans.
Profissionais ouvidas sob a condição de anonimato pela Repórter Brasil contam que os impactos da pirataria vão além do aspecto financeiro e prejudicam também a saúde mental e a vida pessoal. Elas reclamam de que a segurança oferecida pelas plataformas é deficitária, permitindo que ferramentas digitais extraiam os materiais sem dificuldade.
A Repórter Brasil entrou em contato com o Camera Prive, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. O texto será atualizado, caso a empresa envie um posicionamento.
Em nota, o OnlyFans afirma que os criadores detêm completo direito sobre os materiais publicados na plataforma e que a empresa utiliza “tecnologia de ponta” para a proteção dos conteúdos, incluindo ferramentas para bloquear captura ou gravação de tela. Questionada sobre ações diretas para combater os fóruns especializados em piratear conteúdos, a plataforma não emitiu comentários.
O OnlyFans mantém um Centro de Transparência com uma equipe encarregada de dar andamento a pedidos de derrubada de conteúdo para outros sites. Em 2023, a empresa relata ter emitido 13.520 solicitações de retirada de imagens, por violação de direito autoral, sem detalhar quantos foram bem-sucedidos.
Fóruns criados para piratear conteúdo adulto pago se popularizaram em 2018, a partir do lançamento do Thothub. Nele, usuários compartilhavam táticas: de rudimentares “vaquinhas” para assinar o perfil de uma modelo específica a sofisticados plugins para raspar as imagens dos sites, encontrando inclusive materiais já retirados do ar pelas criadoras.
Embora o Thothub tenha sido banido em 2022, após uma ação judicial nos Estados Unidos movida por produtoras de conteúdo contra os donos do site, outros fóruns semelhantes tomaram seu lugar, com seções só para brasileiros. A reportagem acessou algumas dessas redes. Para não alimentar a pirataria, os nomes não serão divulgados.
Os usuários miram não só em criadores de conteúdo, mas também em celebridades e até mesmo em pessoas comuns, reunindo “packs” (pacotes de fotos e vídeos eróticos não autorizados) para vazá-los.
Além disso, expõem influencers que supostamente se prostituem de forma sigilosa, relacionando perfis reservados em sites de acompanhantes às contas públicas em redes sociais. Também compartilham nudes, em sua maioria de mulheres, vazados intencionalmente por ex-namorados – a chamada “pornografia de vingança”. Como numa rede social, as postagens podem ser curtidas e valem como pontuação que dão acesso a seções restritas, com conteúdos mais cobiçados.
Para Juliana Cunha, diretora de projetos da Safernet Brasil, organização especializada em direitos digitais, a dinâmica desses fóruns é resultado de uma socialização tóxica nos espaços virtuais, em que ideias e comportamentos nocivos acabam sendo recompensados e criam “espaços de deseducação”.
“Um usuário ‘valida’ o outro, sem sequer entender que isso é uma violência”, aponta Juliana. “Ainda existe esse resquício de que a culpa é de quem faz esse tipo de conteúdo, ou seja, a culpa seria da vítima”, critica.
Plataformas não impedem pirataria
Uma das seções mais populares entre os usuários brasileiros destes fóruns é o Camera Prive. Com mais de 60 milhões de visitantes por mês, o site é o maior do segmento na América Latina, e mantém diversos criadores e criadoras transmitindo shows por webcam.
Os pagamentos se dão principalmente por “gorjetas” recebidas nos shows ao vivo. As “cammers”, como também são chamadas, incrementam as performances à medida que são pagas. A título de comissão, a plataforma retém 50% do que uma profissional gera de receita.
Em tese, os termos de uso asseguram a privacidade: cammers podem entrar e sair quando bem entenderem, além de terem permissão para bloquear suas transmissões para determinadas cidades, regiões ou países.
“Abri mão de 50% do que eu gero de dinheiro na plataforma pela possibilidade de que o meu conteúdo, minha identidade, privacidade e o meu nome sejam preservados. Mas nem isso acontece”, desabafa Carla.
O risco da pirataria, inclusive, é transferido para os próprios criadores de conteúdo. Os termos de serviço do Camera Prive afirmam que os usuários devem reconhecer como responsabilidade própria a possibilidade de “pirataria e difusão não autorizada” por terceiros, isentando a plataforma de culpa.
As políticas de uso protegem as plataformas, mas não as modelos, segundo elas próprias. Ferramentas automáticas vigiam os chats durante as transmissões das performances e censuram links de redes sociais, trocas de números de telefone entre cammers e clientes e até mesmo a menção a determinadas palavras, como “vazamentos”.
O monitoramento, segundo Carla, estende-se para fora da plataforma do Camera Prive e varre até outras redes sociais. Em caso de violações das regras, as sanções vão desde um “shadow ban” — banimento temporário em que a modelo precisa cumprir horas de transmissão, sem aparecer na tela principal da plataforma — até a suspensão completa.
“O modelo de negócios não é feito para proteger o produtor de conteúdo”, avalia Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e especialista em direito digital. “Se o conteúdo vaza, por que alguém vai querer ter conta lá para produzir? A plataforma, até sob a perspectiva de negócios, deveria dar mais suporte aos criadores de conteúdo”, complementa.
‘Falta lei específica sobre plataformas de conteúdo adulto’
Seja pela falta de ação das plataformas ou pela dificuldade de derrubar os vazamentos, os usuários destes fóruns atuam amparados pela impunidade.
A profissional do sexo e ativista no Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP), conhecida pelo nome Svetlanna, descobriu que seus conteúdos do OnlyFans estavam sendo compartilhados indevidamente em grupos de Telegram. Ela reuniu evidências dos rastros digitais dos usuários e registrou uma denúncia na Polícia Civil de São Paulo. O inquérito levou dois anos e resultou na identificação de um vazador, que hoje é alvo de um processo judicial, ainda em curso.
Mesmo identificando o autor da pirataria, a dor de cabeça de Svetlanna está longe de acabar. Ela ainda é alvo desses vazamentos — algo que, a princípio, tentou combater por conta própria, sem sucesso. “Antes, eu pesquisava meu próprio nome no Google. Só que é um negócio que te desgasta muito mentalmente, é muito violento”, conta.
Hoje, a criadora de conteúdo paga por um serviço particular para realizar este monitoramento. Ela critica o OnlyFans por não tomar medidas mais efetivas contra os fóruns de vazamentos. Prints desses fóruns, obtidos pela Repórter Brasil, mostram vazadores até debochando dos esforços das modelos para coibir a ilicitude.
Felipe Camargo, advogado responsável por ações de derrubada de conteúdo pirata de criadoras do OnlyFans, conta que os dispositivos legais disponíveis no Brasil são limitados, já que muitos materiais são hospedados em diferentes países e, portanto, sujeitos a diferentes legislações. Nesse caso, muitas vezes, o que resta é mitigar.
“É difícil, não tem como eu virar pra elas e dizer ‘vou tirar de todos esses sites’. O que a gente faz é entrar com uma ação contra o Yahoo, o Bing e o Google para retirar esses links”, acrescenta.
Ele conta ainda que a própria retirada dos resultados nos mecanismos de buscas não é algo fácil — já que as empresas, sob o Marco Civil da Internet, não são responsabilizadas por conteúdos postados nelas. “Não processamos o Google. Ao invés disso, pedimos para retirar [os links de conteúdos pirateados], pois isso viola as leis de direitos autorais”, finaliza.
Juliana Cunha, da Safernet, explica que o cenário se agrava por falta de uma legislação específica para a pirataria de conteúdo adulto que também jogue luz sobre o papel dessas plataformas e sobre o princípio da proteção do trabalho. “Essa prática nem sequer é reconhecida como uma profissão, então, fica difícil também de regular as deturpações”, finaliza.