Nordeste

Dos portos ao morro: o racismo ambiental em Recife e Salvador

A capital baiana é considerada a cidade mais negra fora da África

Foto: Victor Moura
Calabeteiras e "menor aprendiz" caminham às margens da BR-324, nas imediações dos bairros do Calabetão, Mata Escura e São Caetano

Era mais uma quarta-feira comum. O dia começava e, ainda me espreguiçando, fui até a cozinha ver o que meu pai tinha preparado para o café da manhã. Ao olhar pela janela, de cima para baixo, vi que a lona plástica preta que cobre a encosta havia rasgado novamente. O vento vindo do mar balançava os retalhos da lona, que não costuma passar três meses intacta. Por segurança, na mesma manhã, do dia 19 de julho de 2023, liguei para a Defesa Civil do Recife e solicitei reposição.

Dois meses depois, olhei pela mesma janela e a lona plástica ainda não havia sido recolocada. Chovia quase todo dia. O barro estava úmido. E o risco de um deslizamento só fazia crescer. De 1988 a 2022, mais de 4 mil pessoas morreram em deslizamentos de terra no País. No Recife, foram 173. No ano de 2019, Recife se tornou a primeira cidade do Brasil a reconhecer a emergência climática. Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ela é a mais vulnerável do País à elevação do nível do mar. A 16° do mundo. A população estimada vivendo em área de risco é de 206 mil, ou 13% do total.

Assim como meus pais, outras pessoas também aguardam investimentos em infraestrutura para não perderem seus bens, suas vidas, ou noites de sono. Segundo informações obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2022, a Prefeitura do Recife gastou 59 milhões de reais com urbanização de áreas de risco. Um valor bem próximo aos 51 milhões de reais gastos em campanhas publicitárias no mesmo ano, sendo 80% desse recurso usado para ações de autopromoção da gestão. Os investimentos em moradia em 2022 somaram 4 milhões de reais, apesar do déficit habitacional de mais de 70 mil casas no município.

Migração e trabalho forçados

Para entender os caminhos que levaram a esse cenário de negação de direitos, decidi voltar ao passado. Em cima de uma bicicleta azul e amarela, e com uma bolsa preta nas costas, comecei a pedalar pela área central da cidade. O ponto exato de partida foi o Porto do Recife, o terceiro do País em movimentação de tráfico negreiro, por onde desembarcaram milhares de negros escravizados entre os séculos XVI e XIX, a sua maioria vindos de Angola e do Congo. O Padre Antônio Vieira, um poderoso missionário português do século XVII, teria dito que “sem Angola não há negros; e, sem negros não há Pernambuco”. 

Por causa da proximidade do Estado com a África Ocidental, a travessia do Oceano Atlântico era mais curta quando comparada a outros centros escravistas, como Rio de Janeiro e Bahia. Foi no Recife que a cabeça de Zumbi dos Palmares, um dos símbolos da luta contra a escravidão, ficou exposta em um poste para servir de exemplo aos negros que desejassem lutar pela liberdade. Com a abolição, a “liberdade” veio, mas sem reforma agrária e nem urbana. Assim, o acesso à terra e à moradia continuou sendo privilégio de uma população branca, rica e de “sobrenome”. Mais de um século depois, essa realidade continua presente ao observar as ruas e dados locais.

Segundo o plano Recife 500 anos, nas áreas mais carentes da cidade, 75% da população se declara negra (preta ou parda), um número acima da média da população negra no geral, que fica um pouco acima dos 50%. A média também sobe quando o assunto é área de risco de deslizamento de terra, que atinge o percentual de 68%, segundo dados de 2022 levantados pelo Instituto Pólis. 

Ao pedalar pela planície onde nasceu o Recife, encontrei aves marinhas, pontes sobre rios, prédios desocupados, antigos depósitos de açúcar, moradores de rua e pedintes com placas de papelão. O suor que escorria da testa logo secava graças à força da brisa marítima. No início do século passado, sobretudo entre a década de 1930 e 1950, uma política de estado contra os mocambos perseguiu e retirou os pobres do Centro.

“Essa era uma política higienista que já estava em vigor na Europa, e é adotada no Brasil depois. Aqui no Recife, de forma mais institucionalizada, aparece na década de 1940, com Agamenon Magalhães. O governo na época garantiu casa, mas para uma parcela mínima. A maior parte dessa população negra liberta e também muitos migrantes do interior se deslocaram para as áreas de sítio, que não tinham habitação, no entorno dos morros e córregos. E foram se estabelecendo por ali”, conta a antropóloga Flora Clarissa.

Caminho refeito

Foi mais ou menos nessa época, na primeira metade do século XX, que minha família e tantas outras subiram os morros da Zona Norte em busca de um chão próprio. Em uma tarde nublada do século XXI, refiz esse caminho migratório, enquanto dividia espaço com carros, ônibus e motos e observava os contrastes na paisagem.

Na margem direita da Avenida Norte, a maior via da cidade, comecei a visualizar as casas empilhadas umas sobre as outras. À medida que adentrava nos ‘altos’ e córregos, os pontos de risco iam se multiplicando. Até que um bandeirão amarelo com letras em preto e vermelho chamou minha atenção. Assim que estacionei, vi que era um ‘pedido de socorro’ hasteado na beira de uma encosta, em frente a uma casa no Alto Santa Terezinha. A mensagem dizia: “Prefeitura, a barreira deste lado só vai ser feita quando morrer a nossa família? Queremos resposta!”.

Na hora, coloquei a bicicleta nos ombros e subi a escadaria para conversar com os moradores dali. Quem me atendeu foi Jacilene, 51, empregada doméstica e moradora da localidade há 30 anos. Ela me disse que o terreno da sua casa era grande, com árvores frutíferas, mas que o cenário mudou desde as pequenas quedas de barreira. Foi preciso colocar lona plástica como forma de proteger temporariamente o amolecimento do solo causado pela água da chuva.

Do alto do morro, na linha do horizonte, Jacilene ia apontando para os lugares onde já havia presenciado deslizamento de terra com vítimas. A mais recente tragédia foi durante as chuvas de maio e junho de 2022, quando 50 pessoas morreram no Recife. Duas dessas pessoas foram um adolescente de 13 anos e um gari de 47 anos que moravam no  morro vizinho, na Linha do Tiro, bem em frente à sua janela.

“No dia que aquela barreira caiu, eram umas 4h30 da manhã, uma escuridão. Meu esposo viu toda cena, aquela gritaria. Ele correu, desceu a escadaria, e foi ajudar a tirar o povo soterrado. Foi muito triste. A gente só via aquela cena na nossa mente. Passamos um tempo fora, uns seis meses fora daqui. Depois voltamos porque não temos condições de pagar aluguel, ainda mais com água, luz e a quantidade de criança que tem para criar”, disse.

Adultos e crianças traumatizados

Além do marido e da filha, Jacilene mora com cinco crianças entre 3 e 12 anos e um adolescente de 14 anos. Por conta do caminho estreito que eleva o risco de queda, os netos só brincam dentro de casa, “passam o dia atrás das grades”, só saem para a escola. Para espiar a nossa conversa, volta e meia uma das crianças menores colocava a cabeça próximo à janela gradeada ou na abertura da porta de madeira.

Jacilene me contou que elas ficaram traumatizadas após presenciar a tragédia. Desde então, a família tem buscado contornar a situação. “Todos ficaram com medo: do ‘mais pequeno’ ao ‘mais grande’. Mas como eles já esqueceram, a gente evita tocar no assunto. Eles ficaram muito tempo lembrando (do deslizamento). Quando chovia, diziam ‘vamos sair daqui, mainha, a gente vai morrer’”, relatou, com discrição para que não ouvissem. 

Em entrevista à Marco Zero Conteúdo, a mãe do adolescente de 13 anos que morreu no ano passado, Elivaneide Nunes, também revelou ter desenvolvido um “medo da chuva”. Um fenômeno natural característico de cidades da Zona da Mata nordestina, como o Recife; mas, que por omissão histórica nas políticas de moradia, acaba se tornando gatilho para a dor. As chuvas extremas, mais intensas e em um menor período de tempo, causadas muito devido ao aquecimento do Oceano Atlântico, apenas escancara uma vulnerabilidade local já existente.

“Quando chega o inverno, a gente pensa ‘como vai ser?’, ‘será que vai chover o mesmo do ano passado?’, aí mexe com o psicológico. Mas a gente precisa levantar a cabeça.  E a vida segue. Se for chuva forte, a gente sai, vai para casa de família, por causa do risco. E não é nem pela gente, o medo é mais pela vida das crianças”, contou Edson, 53, marido de Jacilene. Ele tinha acabado de chegar do trabalho como vendedor ambulante. 

Edson disse que, quando aconteceu o deslizamento no morro em frente à sua janela, a comunidade foi a primeira a chegar junto. Cortaram a energia elétrica, cavaram o barro molhado, resgataram pessoas soterradas. Quando a obra de contenção começou na encosta do lado de lá, ao custo de 1.9 milhão de reais, Edson teve a ideia de fazer um bandeirão com mensagem à Prefeitura cobrando uma obra do lado de cá e questionando o motivo de só começarem a agir depois de o pior acontecer.

Em 2020, um requerimento da vereadora Michele Collins (PP) já determinava o serviço de contenção de barreira na Rua Andiroba, na Linha do Tiro, bem ao lado de onde duas pessoas viriam a morrer em 2022. “Se a gente não ficar em cima, a nossa barreira não sai”, afirmou Edson, que tem doado tempo e dinheiro na luta por esse sonho. Do quintal da sua casa, e depois de mais perto, pude ver mais de 10 funcionários terceirizados trabalhando na construção do muro de arrimo que vai garantir noites de sono para 34 famílias que moram do outro lado.

Além do medo, um sentimento adicional presente na vida de quem vive em área de risco é a ansiedade. Quando algum parente, vizinho ou morador de outra localidade é beneficiado por políticas de moradia, a mente sempre se pergunta: ‘quando a minha vez vai chegar?’. Em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a antropóloga Flora Clarissa entrevistou moradores do Alto José Bonifácio, outro morro da Zona Norte do Recife. A maioria das pessoas com quem ela conversou reconheceu a dimensão política da falta de moradia; mas, por outro lado, sentimentos como auto responsabilização, culpabilização e competição ajudavam a ‘individualizar’ e a ‘despolitizar’ a causa coletiva.

Concorrência por atenção pública

“Acredito que acirrar a competitividade seja o lado mais perverso da omissão do Estado. Na pesquisa, vi casos de obras que chegam a uns moradores, e não a outros. E aí a vizinha reclama, e diz: ‘ali não devia ter (um muro de contenção), não apresenta risco a ninguém, o risco mesmo está aqui’. Perceba que os vizinhos começam a competir entre si quando todos deviam ter uma casa em condição de segurança”, explica a pesquisadora. Um acirramento que cresce com a falta de transparência em relação aos critérios de escolha sobre qual casa, área ou comunidade tem maior necessidade de proteção. 

Aqui no Recife, a encosta que divido com família e vizinhos, no bairro de Água Fria, é de risco 3 (alto). Certa noite, meu pai, que é cabeleireiro, viu a conclusão de uma obra na TV. E veio questionar o porquê de a nossa demorar tanto. Aí eu expliquei que existem outras na cidade até piores, de risco 4 (muito alto), que continuam desprotegidas. Em seguida, falei que o problema era o orçamento ser pequeno dada a urgência, a quantidade e o perfil das pessoas que precisam. O Plano Municipal de Redução de Risco do Recife, de 2006, último dado oficial com esse recorte disponível, estima cerca de 10 mil pessoas morando nessas áreas (ainda) mais vulneráveis a deslizamentos. 

Em abril de 2023, a Prefeitura do Recife oficializou um empréstimo de 2 bilhões de reais junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), sendo 500 milhões destinados a eliminar todas as encostas de maior risco, de grau 3 e 4. “As obras estruturantes precisam ser pensadas, propostas e viabilizadas, na maioria das vezes, pelos municípios. Mas, a depender do tamanho da obra, pode precisar de investimento do Estado e até mesmo da União. A pauta precisa estar em agenda de governo. O Brasil passou a olhar essas questões de prevenção de desastres socioambientais somente há 12 anos”, pontua Regina Alvavá, doutora em meteorologia, pesquisadora e diretora substituta do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

As enchentes e deslizamentos ocorridos na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, motivaram a criação do Cemadem. O evento extremo levou à morte de mais de 900 pessoas, sendo até hoje a maior catástrofe climática da história do Brasil. 

Alerta permanente

O Cemaden é um órgão federal que monitora, em tempo real, de forma ininterrupta, cidades brasileiras vulneráveis a desastres. Um pacote de sensores distribuídos pela capital pernambucana observa o quanto de água entra no solo até três metros de profundidade, a capacidade de o solo de reter água e o limiar crítico de água acumulada capaz de levar o solo a deslizar. No dia 25 de maio de 2022, o órgão emitiu um alerta de chuvas intensas e alto risco hidrológico e geológico para a Região Metropolitana do Recife, mas a Defesa Civil da capital só acionou o plano de contingência dois dias depois, já na iminência dos quase 200 mm que cairiam no dia 28 de maio de 2022.

“As cidades do leste nordestino estão na ponta do continente. E as chuvas que normalmente caem nessas cidades costeiras estão muito associadas com sistemas relacionados ao oceano. O que a gente tem observado nos últimos tempos são chuvas mais intensas, mais frequentes, e, inclusive, uma distribuição desigual. Às vezes cai um toró em uma região da cidade, e não cai em outra. Não há uma distribuição uniforme da chuva”, explica a pesquisadora. 

Mesmo confirmando os efeitos de um planeta mais quente, ela destaca que, em muitos casos, os deslizamentos não são deflagrados apenas pela chuva, mas sim pelo componente humano da ocupação desordenada. Uma casa pode vir a desabar por retirada de vegetação, acúmulo de lixo na encosta, excesso de peso da construção sobre o solo, baixa qualidade do material usado na estrutura e até mesmo pequenos vazamentos, como uma caixa d’água pingando dia e noite sobre o terreno. Uma realidade que, segundo ela, revela a ausência de uma política clara de moradia e de ações não estruturantes nas comunidades, como promoção da educação para a percepção do risco. 

Regina Alvavá participou da última publicação que contabiliza a população brasileira em área de risco feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Cemaden. O mapeamento estimou cerca de 8 milhões de pessoas em todo País. Em números absolutos, Recife ficou na vice-liderança da Região Nordeste, só ficando atrás de Salvador. Ainda com base no Censo de 2010, a capital baiana apresentou 1,2 milhão de habitantes em áreas de risco, ou seja, 45% da população total. Uma ampla liderança contando o Nordeste e cidades de outras regiões do Brasil.

Para entender melhor esse cenário, peguei a bicicleta que uso para fazer reportagens no Grande Recife, e fui até a rodoviária. Foram quase 16 horas “de carona” em um ônibus interestadual. Assim que cheguei, saí pedalando com o objetivo de visualizar as diferenças e proximidades entre as duas cidades. O ponto exato de partida foi o Porto de Salvador, o segundo do País em movimentação de tráfico negreiro, por onde desembarcaram mais de um milhão de negros escravizados entre os séculos XVI e XIX, a maioria vindos de Angola e da Costa da Mina. 

Cidade mais negra fora da África

A capital baiana é considerada a cidade mais negra fora da África, tendo 82% da sua população autodeclarada preta ou parda. Porém, mesmo sendo maioria, ao observar as ruas e dados se nota que a “igualdade racial” está longe de ser uma realidade. Em Salvador, cerca de 42% dos trabalhadores estão na informalidade.

Segundo o IBGE, existe uma série de desigualdades por cor ou raça, com destaque para a diferença salarial entre brancos e negros (pretos e pardos). No caso das pessoas pretas, a disparidade é ainda maior, com um rendimento médio de R$ 1.746  contra R$ 5.416  da população branca. Em geral, renda e moradia caminham juntos. Bairros com alto poder aquisitivo e infraestrutura, como Itaigara, Vitória e Graça, são onde menos pessoas se autodeclaram negras, na faixa dos 30%. Por meio da LAI, perguntei à Defesa Civil de Salvador (Codesal) se havia algum recorte racial dos moradores das áreas de risco, mas esse dado não existe. 

Ao contrário do Recife, que nasceu como planície, e os morros só foram sendo ocupados após a abolição, Salvador tem uma relação com a ‘cidade alta’ desde a fundação. O primeiro registro de deslizamento de terra é de 1551, ainda durante o Brasil Colônia. A cidade é uma grande “falha geológica”. Fui percebendo isso à medida que pedalava pela área central, no alto e no baixo, em meio aos desníveis no relevo, com o azul da Baía de Todos-os-Santos no horizonte.

Arrependido por não ter colocado marcha na bicicleta, saí pela costa em direção ao lado da cidade banhado pelo Oceano Atlântico. Até que parei para conversar com uma senhora, na Praia de Ondina, que me falou sobre uma comunidade ali perto chamada Alto da Sereia. Na noite chuvosa do dia 7 de maio de 2018, parte de um imóvel desceu do topo de uma encosta à beira-mar e desabou na praia. Outras sete casas do Alto da Sereia foram interditadas pela Codesal, cinco da mesma família. Não houve vítimas. Mas as pessoas desabrigadas sobrevivem até hoje com o auxílio-moradia de 300 reais, valor insuficiente para arcar com os custos de um aluguel em uma localidade segura. 

“Nunca passou pela minha cabeça que fosse desabar. A gente sabia que morava em uma área risco por estar na ponta, mas o pessoal sempre falava ‘é rocha, não vai cair’, e também por tantos anos que já vivemos lá”, disse Maria Óneia, 47, que morava junto com outros oito familiares, incluindo a mãe idosa e o filho que tem deficiência mental. Na casa ao lado, a que desabou, morava a sobrinha Dalila, de 25 anos. Por pouco ela e o bebê, então com um ano de idade, não desceram junto com o barro.

“Eu só vi a rachadura porque afastei o sofá da parede da sala. Foi coisa de estar arrumando a casa e de repente ver ela lá. Isso aconteceu horas antes, no mesmo dia do deslizamento. Não teve nenhum indício, não teve nada”, recorda. Entre 2012 e 2022, Salvador registrou desabamento de 1.147 imóveis localizados em áreas de morro. Segundo a Codesal, a maioria era de construção irregular. O número de desabrigados e de vítimas nesse período não foi informado pelo órgão. 

Debaixo de um guarda-sol vermelho, conversando com Maria e Dalila, pude conhecer um pouco da realidade do Alto da Sereia. Uma pequena comunidade de baixa renda, de maioria negra, ‘ilhada’ entre o Oceano Atlântico e os bairros de alto padrão que compõem a orla sul de Salvador. Elas contaram que o morro tem passado por um processo de ‘desterritorialização’ com investidores ricos, a maioria estrangeiros, comprando a casa de moradores em situação de dificuldade financeira. Esta matéria do Jornal Correio de 2015 já falava do interesse de ‘gringos’ pela região. Oficialmente, o Alto da Sereia é uma comunidade quilombola registrada pelo Estado da Bahia. Maria Óneia diz que o povo negro e pobre está sendo sutilmente excluído.  

Junto da mãe, em uma tarde de sol, Maria trabalhava vendendo cachorro-quente e cerveja à margem da Avenida Oceânica. Com o assunto ‘desabrigados na Sereia’ caindo no esquecimento, ela fazia questão de lembrar da sua história com o lugar, inclusive a dor dos prazeres que deixou de ter. “A gente via a Festa de Iemanjá da nossa casa (no dia 2 de fevereiro) e hoje não podemos mais. Minha mãe todo ano trazia uma visita para ver a festa. ‘Da minha laje, você vê tudo’, ela sempre repetia essa propaganda. Vire e mexe ela chora pensando nessas situações. Mas eu sempre estou presente, não deixo a peteca cair porque tem que ter esperança. A gente quer pelo menos uma indenização ou a contenção da encosta”, declarou, disposta a “parar o trânsito na orla”, para tentar ser ouvida.

Ao subir as escadarias do morro, vi escombros dos imóveis demolidos em meio ao mato que cresce. Algumas casas inteiras, com gente morando dentro, estão bem próximas de onde o solo deslizou da última vez. Em uma delas, cheguei a ver uma rachadura bem no meio da estrutura. “Aconteceu de a gente perder a casa, mas porque a Codesal não faz uma nova vistoria? Ainda tem gente morando. As nossas casas eram de risco, mas as das outras pessoas, que moram coladinho, também são. E se acontecer novamente? E se morrer alguém dessa vez? Aí que vai acordar para ver a nossa situação?”, questionou Dalila, que agora paga 500 reais de aluguel para continuar morando na comunidade. Neste estudo do solo feito na Pedra da Sereia é possível ver a quantidade de imóveis no raio de vulnerabilidade.

Racismo ambiental

Para a geógrafa Jilvana Ferreira, as condições naturais de Salvador sozinhas não explicam nem justificam o número expressivo de áreas de risco. Seu Trabalho de Conclusão de Curso pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) debateu a contribuição do racismo na manutenção desses deslizamentos. Enquanto pesquisava no ambiente acadêmico, chegou a ouvir falas que minimizavam o componente racial influenciando na vulnerabilidade. “Falavam: ‘a sua abordagem pode estar um pouco radical, não é racismo. O problema não é porque eles são negros, é porque eles são pobres. O problema é que eles foram morar nesses lugares’. Ainda tem muita culpabilização da população”, expõe.

Ela destaca também que existe uma insistência em ver racismo somente em “ações de caráter individual”, e não nas ações (e omissões) do Estado e das instituições. Há uma insistência, segundo ela, em não ver o racismo, que produz essa indiferença em relação ao outro, como parte do capitalismo. Uma insistência política-midiática em dizer “a chuva que mata” quando uma série de direitos básicos foram previamente negados a uma população que é “vista apenas como corpo”.

Agora cursando mestrado pela UFBA, Jilvana tem pesquisado para a dissertação políticas públicas para prevenção de deslizamentos na capital. “Hoje também discuto a questão da necropolítica, que é uma ação de matar, de deixar morrer, ou de fazer sobreviver em mundos de morte. Você tem uma população que é forçada a conviver com a dor, com a perda, e essa é mais uma herança desse período de escravidão”, avalia. Ela compara o ‘plástico preto’ usado na proteção dos moradores ao mesmo ‘plástico preto’ usado para cobrir os corpos que morrem nas periferias.

Por meio de Jilvana, fiquei sabendo da importância de sair da orla e ir até o miolo central de Salvador, um espaço de expansão periférica da década de 1950, onde está concentrada a maioria dos pontos de risco. O miolo reúne 41 bairros e ocupa 35% do território. A última grande tragédia ambiental da cidade aconteceu nessa região, em 2015, quando 15 pessoas morreram em dois deslizamentos. De 1988 até 2022, em Salvador, houve 213 mortes com esse tipo de ocorrência.

Orientação necessária

A caminho do miolo, acabei estacionando a bicicleta antes do previsto próximo à Arena Fonte Nova, no bairro de Brotas, na sede da Codesal. Vi no celular que aconteceria uma capacitação de voluntários da Defesa Civil, e aquilo chamou minha atenção. Nos morros do Recife, ao longo de 15 anos morando em área de risco, nunca havia visto algo parecido.

Na minha comunidade, onde acompanho o dia a dia há muito tempo, jamais foi dada a oportunidade de aprender e de contribuir com a proteção do território. Por isso, ao longo de cinco horas, sem dizer que era de outra cidade, tampouco jornalista, fiquei ouvindo as palestras. Junto de outras 17 pessoas, pude entender melhor conceitos hidrológicos e geológicos, percepção de risco, mudanças climáticas, primeiros socorros e as ações institucionais da Codesal. O cenário foi de uma Salvador onde “chove dia sim, dia também” e que, segundo os técnicos, “não está preparada para eventos extremos”. 

Desde 2013, a Secretaria de Infraestrutura e Obras Públicas (Seinfra) de Salvador realizou 159 obras de contenção de encostas, com investimento de 176,5 milhões de reais. Isso dá uma média de 17 milhões de reais por ano (2013-2023), o que é pouco para a cidade com o maior contingente populacional do Brasil morando em áreas de risco. Para se ter uma ideia, só no ano de 2022, o orçamento para a publicidade institucional da Prefeitura foi de 59 milhões.

Desde 2016, ano seguinte à tragédia com 15 vítimas no miolo da cidade, a Prefeitura, por meio da Codesal, mapeou 160 áreas de risco e aplicou 261 geomantas. O uso de geomantas tem crescido em Recife e em Salvador. Por mais que garanta tranquilidade aos moradores, a geomanta não é uma solução definitiva, com uma vida útil que varia entre 5 a 10 anos. No que diz respeito à prevenção, a Codesal afirma também que “a ocupação urbana de forma irregular e desordenada é um dos principais problemas enfrentados pela administração municipal”.

Uma diferença que encontrei em Salvador e não vi no Recife é que, além da Prefeitura, o governo da Bahia também realiza, desde 2014, obras de contenção de encostas de alto e muito alto risco na capital. Até agosto de 2023, o  Programa Estadual de Prevenção de Desastres Naturais realizou 150 obras em 65 localidades, com benefício a 280 mil soteropolitanos. O investimento foi de 265 milhões de reais. Por meio da LAI, perguntei ao Governo do Estado de Pernambuco se existia alguma política de prevenção em áreas vulneráveis a deslizamentos de terra no Recife, mas não tive resposta. 

Sob o sol da Bahia, a caminho do miolo de Salvador, novamente precisei estacionar a bicicleta, mas desta vez devido ao risco viário muito alto. Viadutos, túneis e avenidas rápidas (entre 60km/h e 80km/h) dificultavam a observação segura do território, bem diferente da orla, onde encontrei infraestrutura para mobilidade ativa e algumas Zonas 30. Para piorar, para chegar até o miolo, precisaria passar pela BR-364, cujo acostamento curto não transmitia segurança. Ao conversar com moradores, fui descobrindo uma cidade com muitas ameaças. Me lembro de ter perguntado sobre área de risco, e ouvir “de que tipo?”. Volta e meia a pauta de segurança pública tomava a frente. 

Estando sozinho, e pela primeira vez, em uma cidade onde não conhecia ninguém, decidi acatar o conselho dos moradores e seguir até o miolo “em um veículo seguro”. Ao chegar à Escola Municipal do Calabetão, que serve como ponto de abrigo para famílias durante as chuvas, conheci uma mulher chamada Carla que me convidou para conhecer a comunidade onde mora. “Está com tempo, não é? Pois vamos bater perna no Calabetão”, disse ela, que é “calabeteira de nascença” e integra o coletivo de mulheres do bairro. Minutos depois apareceram as companheiras Nira e Leila e a “menor aprendiz” Catarina, de 6 anos.

O Coletivo Calabeteiras existe há quatro anos e nasceu da necessidade de se pensar ações solidárias e  políticas públicas para as mulheres, maioria no comando das famílias da localidade. Com o crescente custo de vida e demanda por habitação, elas dizem notar o aumento das “autoconstruções”, sobretudo em áreas de mata e encostas antes desocupadas, e uma verticalização das casas que já existiam.

“O bairro da gente não teve casos de deslizamentos com vítimas, só o susto que a pessoa leva ouvindo a sirene tocar de madrugada, morando em área de risco. Tem pessoa que perde armário, perde geladeira… Muitas mulheres são empregadas domésticas, mães solteiras… e não é fácil não, é uma vida inteira para conquistar”, relata Carla, ao destacar o impacto das perdas materiais para uma classe trabalhadora que já tem pouco.

Barulho que salva

Atualmente a cidade de Salvador possui 14 sirenes de evacuação nas 14 áreas tidas como mais críticas para deslizamentos de terra. Uma dessas sirenes fica no Calabetão. Ela é acionada quando ocorrem chuvas intensas em um curto período de tempo, e alerta a população para sair de suas casas. Como o Recife não tem sirenes, acabei passando desavisado pelo “poste com megafones no topo”, só reparando na estrutura com a ajuda das calabeteiras.

Em Pernambuco, um projeto de lei, de março de 2023, do deputado estadual João Paulo (PT), prevê a instalação de sirenes sonoras em áreas de risco geológico do Estado. Em 2022, 133 pessoas morreram durante o período chuvoso, a maioria por deslizamentos. Assim como lona plástica e geomanta, a sirene não resolve de forma definitiva o problema da falta de moradia, mas pode vir a salvar vidas em meio à chegada repentina de um evento extremo. Por e-mail, a Codesal afirma que faz periodicamente simulações de evacuação nas áreas de risco, como treino preventivo. 

Quando chove forte no Calabetão, a estudante Bia, de 17 anos, sua mãe e o irmão de oito anos, evitam dormir no quarto dos fundos para dar tempo de correr, caso o solo deslize. A família nunca precisou deixar a residência. Com a sirene tocando, e a água batendo no telhado, os três se afastam da encosta e “rezam” para que a chuva pare. Ela conta que o cenário é bem assustador. “Antes mesmo de eu nascer já tinha esse barranco, mas não descia como está descendo agora. Todo mundo aqui da rua liga para Codesal para tentar resolver a situação. Mas nunca chegaram para resolver de forma definitiva, tirar a lona e bater concreto como já fizeram em vários outros lugares”, afirma.

Perto de alcançar a vida adulta, Bia sonha com noites tranquilas para sua família e outras cinco casas vizinhas, na parte alta e baixa do morro. Para ajudar nas despesas de casa e ter seu próprio dinheiro, ela trabalha em um estabelecimento preparando quitutes baianos, como acarajé, abará e vatapá. Carla me disse que são os melhores quitutes da região.

Ao longo de mais de duas horas de caminhada sob o sol da Bahia, fui conhecendo a realidade local com a ajuda das calabeteiras, que iam me apresentando aos moradores. Distribuímos “bom dia” nos bares, salões de beleza, no campo, na praça e nas janelas das casas. Batemos perna nas margens da BR-324, ruas, becos, ladeiras e escadarias. Sem demonstrar desgaste, a “menor aprendiz” Catarina, de 6 anos, ia observando e tecendo comentários sobre a comunidade onde vive. “Tia Nira, ali tem esgoto”, apontou em tom de curiosidade misturada com indignação em meio à falta de saneamento. “Catarina vê a mãe, a tia, militante de movimentos sociais. Com as discussões que ela acompanha, é uma criança que vai crescer com outra visão de mundo”, me disse Carla.

Junto das “calabeteiras de nascença”, pude conhecer um pouco da luta histórica do Calabetão e bairros vizinhos, que integram o miolo da cidade. Uma região periférica que, em meio a inúmeras carências e ameaças, tem vivenciado os efeitos de uma Salvador mais quente e mais chuvosa. “A primeira capital do Brasil” e também o lugar do País onde mais gente mora em áreas vulneráveis a desastres. 

Com as recentes obras feitas pela Prefeitura e o Estado, a tendência é que o contingente de 1,2 milhão tenha diminuído desde o último levantamento. Por outro lado, existem fatores que podem ter mantido ou elevado esse número, como pandemia, alternância de poder, migração, aumento do custo de vida, subemprego e desemprego. “Nós vamos fazer a atualização da população morando em áreas de risco neste ano (2023) com os dados do Censo 2022. Estamos apenas esperando o IBGE liberar os dados. Nós temos uma parceria com o órgão e, tão logo eles sejam liberados, nós vamos priorizar a atualização nas capitais, pois são onde tem uma maior concentração de pessoas”, noticiou Regina Alvavá, pesquisadora e diretora substituta do Cemadem. 

Pedalando entre Recife e Salvador encontrei proximidades que vão além de praia, sol, cultura popular e Carnaval. Em ambas as cidades, os morros carregam uma herança racista e escravista mal resolvida, que se traduz em uma massa de gente na luta por habitação e habitabilidade. Sem uma casa segura e confortável, essa população, que é de maioria negra, não consegue ou tem mais dificuldade de estudar para a prova do dia seguinte, cuidar da saúde mental e ter acesso a oportunidades de forma geral. “Ninguém mora em área de risco por que quer” e “a chuva não mata ninguém” são obviedades que ainda precisam ser ditas. Em um País que nunca fez reforma agrária e urbana, e que cresceu a partir de uma urbanização excludente, só se garante o direito à moradia investindo em moradia.