Nordeste

Ambientalistas lutam contra instalação de usina no Ceará

O Instituto Verdeluz protocolou uma ação civil pública na Justiça Federal do Ceará

Foto: Camila de Almeida | Agência Eco Nordeste
A notícia do licenciamento da usina causou apreensão nos movimentos ambientalista

O Ceará se prepara para a instalação de mais uma usina termelétrica movida pela queima de combustível fóssil. Com a instalação já licenciada pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), a UTE Portocem, que será instalada no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), vem gerando resistência e preocupação por parte dos movimentos ambientalistas, associações indígenas e na comunidade acadêmica do Estado. Isso porque, embora o empreendimento seja divulgado como projeto que trará desenvolvimento ao Ceará, a termelétrica representa sérios riscos ao meio ambiente e agrava a situação de emergência climática em que vivemos.

Como denúncia, o Instituto Verdeluz protocolou uma ação civil pública na Justiça Federal do Ceará, na qual solicita a suspensão imediata da instalação da nova termelétrica sob o argumento de que o projeto está maculado por inúmeras ilegalidades ligadas a aspectos socioambientais. A usina utilizará gás natural liquefeito (GNL), que, apesar da denominação “natural”, causa profundos impactos na atmosfera terrestre por ter como principal componente o metano (CH4), um dos mais maléficos gases de efeito estufa.

A ONG argumenta que o projeto Portocem apresenta uma potência nominal de 2.189,6 MW, maior do que a soma de todas as outras termelétricas já em funcionamento no CIPP, e utilizará tecnologia de ciclo aberto em pelo menos uma de suas fases, de baixa eficiência energética. O empreendimento também deverá demandar mais de 3 milhões de litros de água do mar por hora na Fase II e de 5 mil litros por hora de água do Açude Sítios Novos na 1a etapa da Fase I, que já secou entre 2015 e 2016 pelo alto consumo do CIPP.

De acordo com o Instituto Verdeluz, organização que vem realizando estudos na área junto à academia, o licenciamento ambiental do empreendimento vem avançando em total desconsideração às comunidades indígenas que serão por ele direta e indiretamente afetadas que tiveram seus direitos de consulta livre, prévia, informada e de boa-fé violados. Destaca, ainda, que houve a indevida fragmentação do projeto, o que gerou uma falsa ideia de redução dos impactos que serão causados aos bens naturais, à saúde, à segurança e ao bem-estar da população, bem como às atividades sociais e econômicas locais, que incluem os modos de vida tradicionais.

A denúncia encaminhada ao Ministério Público Federal do Estado do Ceará (MPCE) foi norteada pelas irregularidades do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) e demais estudos apresentados pelo empreendedor, assim como na falta de diligência da Semace na condução do licenciamento ambiental, para solicitar

i) a imediata suspensão da Licença de Instalação concedida
ii) impedir que a Portocem inicie suas obras
iii) impedir que a Semace conceda qualquer outra autorização relacionada à UTE Portocem.

Por fim, pede-se a declaração de nulidade do processo de licenciamento desde o início.

“Essa ação reforça o movimento por justiça climática que tem ganhado força nos últimos anos no Brasil. Recorrer ao judiciário é um último grito de socorro da população contra a expansão irresponsável do Complexo do Pecém, que hoje é representada por esse mega empreendimento chamado Portocem. Não se pode falar em transição energética justa sem respeitar direitos fundamentais, principalmente os daqueles que mais ajudam na proteção do nosso meio ambiente, os povos originários”, reforçou Fernanda Castelo Branco Araújo, coordenadora geral e advogada do projeto Clima de Urgência, do Instituto Verdeluz, doutora em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e Aix-Marseille Université.

Segundo informou Fernanda, a decisão do juiz Ricardo Porto, da 8ª vara da seção judiciária do Ceará, saiu antes de 24h desde que a denúncia foi protocolada e não foi favorável à causa: “O juiz entendeu que não tinha os requisitos legais para a concessão do pedido liminar, ou seja, para ele não existia urgência no caso porque o licenciamento já tinha sido iniciado ainda em 2017. Ele também entendeu que, no caso da consulta aos povos indígenas, prévia e informada, deveria existir apenas se fosse comprovada a presença de comunidades indígenas e que essas teriam o território afetado pela usina”.

E completa: “Os argumentos para indeferir o pedido de suspensão da construção da usina foram muito absurdos e sem fundamentação legal. Quanto a esse aspecto da urgência, a licença de instalação é a única que permite qualquer intervenção concreta. A licença prévia não permite isso e, mesmo assim, antes da licença de instalação ser concedida, ainda houve alterações no terreno que pretende ser utilizado para a construção da usina. Quanto aos argumentos relacionados à consulta prévia dos povos indígenas, já constava na peça inicial que o povo Anacé está em processo de demarcação de suas terras em curso há vários anos e desde 2018 existe um grupo de trabalho dentro da Funai, próprio para discutir a delimitação desse território, que não é considerado apenas o lugar de habitação daquela população, mas sim todo o espaço que tem uma relevância sociocultural de atividades econômicas ou mesmo espirituais. A visão de território que ele colocou para indeferir foi muito restrita e foge de tudo que tem sido reconhecido com relação aos direitos indígenas e seus territórios. Além disso, o juiz de primeiro grau ignorou todos os argumentos ambientais e climáticos. Agora estamos aguardando a decisão do pedido de reversão do nosso pedido liminar”.

Fernanda Castelo Branco atenta, ainda, para o fato de que a condução dos processos judiciários do caso tem tido uma celeridade fora do comum, já que em menos de 24h da denúncia feita o pedido liminar foi indeferido. “Isso nos leva a entender que já há uma propensão para que os nossos pedidos sejam negados e que não estão se debruçando sobre a leitura e avaliação dos argumentos jurídicos levados no conteúdo da nossa denúncia”.

Essa é a primeira ação climática no Nordeste e contou com a contribuição de especialistas de diversas áreas, além de ser resultado de um acompanhamento coletivo e atencioso dos conflitos causados pelo CIPP às comunidades que vivem em seu entorno, bem como da resistência traçada há décadas pelo povo indígena da etnia Anacé.

Povos tradicionais impactados

Imagine morar ao lado de lagoas e não ter acesso à água encanada, ao mesmo tempo  respirar ar poluído pelo mesmo pó de carvão que precisa ser constantemente retirado de sua casa. Tudo isso enquanto observa indústrias gigantescas ao seu lado, tendo garantia de acesso a 40 garrafões de água por segundo em média e utilizando carvão para produzir energia. Quem vive nas comunidades vizinhas às usinas respiram esse pó, transportado por esteiras acima de sua cabeça, sem proteção adequada, com o restante armazenado em montanhas a céu aberto.

Essa é a realidade em que vivem várias comunidades no entorno do CIPP, o que inclui o povo indígena Anacé, que resiste historicamente aos impactos constantes e cumulativos das termelétricas na região. As usinas já instaladas consomem em média 800 litros de água por segundo, enquanto comunidades inteiras não possuem acesso à água encanada e, as poucas que possuem, vivem na incerteza do abastecimento. Segundo o Instituto Verdeluz, a poluição pelo pó de carvão, que comprovadamente gera e agrava problemas de saúde, chega à casa de indígenas em aldeias localizadas a mais de 10km de distância.

“O empreendimento está previsto para ser a maior termelétrica da América do Sul. Ela vai retirar água do mar, que depois retornará diretamente para o mar, com poluentes e mais salinização, prejudicando toda a vida animal naquela região e todo o povo que vive ao redor. É uma das termelétricas mais agressivas que teremos aqui. É um empreendimento muito prejudicial ao nosso território indígena, bem como para todo o povo das comunidades vizinhas”, destacou Paulo França Anacé, liderança indígena do Povo Anacé.

De acordo com a denúncia apresentada, a Portocem pretende se instalar em uma localidade ainda mais próxima dos indígenas. Segundo o EIA/RIMA do empreendimento, que sequer consultou a Funai (autarquia federal especializada a quem compete a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas), a aldeia mais próxima está a 10km, mas em uma rápida pesquisa no Google Maps, é possível constatar a existência da Escola Indígena Joaquim da Rocha Franco a apenas 5km. Tal omissão é considerada crime segundo o art. 69-A da Lei de Crimes Ambientais, pois dificulta a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais. Outros diversos impactos socioambientais ficaram de fora do EIA/RIMA, como os relacionados à saúde, à segurança, ao bem-estar, aos modos de vida tradicionais, às atividades sociais e econômicas locais, assim como à qualidade do ar, do solo e das plantações como consequências de impactos adversos no clima.

Sem direito à consulta prévia

Segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os povos indígenas devem ser consultados previamente quanto às intervenções que possam vir a afetá-los. A falta de consulta livre, prévia, informada e de boa-fé ao povo indígena Anacé no licenciamento ambiental da Portocem vem sendo denunciada há anos e em diversas instâncias. Ainda em 2019, durante reunião do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Coema) que aprovou a implantação da UTE Portocem dias antes da concessão da licença prévia pela Semace, o advogado João Alfredo Telles Melo, então presidente da Comissão de Direito Ambiental (CDA) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)/CE, apontou que as populações indígenas não foram “efetivamente ouvidas”, e citou a Convenção 169.

No mesmo evento, o Procurador da República Alessander Sales, conselheiro representante do Ministério Público Federal (MPF), pontuou que a análise técnica foi deficiente. “Não há análise de alternativas tecnológicas utilizadas. A Lei manda fazer. Quase tudo é jogado para condicionantes no licenciamento posterior, que não vai passar mais por este conselho”, alertou o procurador. A falta de participação pública efetiva no processo de licenciamento também foi denunciada por diversas outras comunidades locais.

Em nota enviada à Eco Nordeste, a Semace declarou:

“Em relação aos danos socioambientais do projeto em questão, esclarecemos que estes foram cuidadosamente avaliados e contemplados no Estudo de Impacto Ambiental e Respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). O EIA/RIMA serviu de base para a emissão da Licença Prévia Nº 145/2019, válida até 18/07/2023, após aprovação por uma equipe multidisciplinar de técnicos da Semace e pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (COEMA), através da Resolução COEMA n° 04, de 04 de julho de 2019, na 272ª reunião ordinária do órgão. Ressalta-se que o COEMA é um órgão colegiado de grande importância para o Estado, responsável por assessorar e deliberar sobre questões ambientais em âmbito estadual. Suas decisões são tomadas democraticamente, por meio de votação direta e aberta dos seus 39 conselheiros, que representam órgãos públicos dos poderes Executivo e Legislativo do estado, universidades públicas, instituições da sociedade civil, entidades de classe de profissionais de nível superior e o movimento ambiental.

No que diz respeito à fase de instalação, foi apresentado o Plano Básico Ambiental (PBA), que detalha os planos e programas contemplados no EIA/RIMA a serem executados durante as fases de instalação e operação do projeto. A Licença de Instalação nº 09/2023, válida até 30/03/2027, foi concedida com base na documentação apresentada e na análise técnica da Semace. É importante ressaltar que a licença foi emitida com uma série de condicionantes a serem cumpridas pelo empreendedor objetivando a mitigação dos impactos negativos.

Em relação às comunidades situadas no entorno da área do projeto, esclarecemos que a Semace realizou Audiência Pública, seguindo os pressupostos legais dispostos na Resolução CONAMA N° 09/1987, durante o rito de análise do processo de licenciamento ambiental para emissão da Licença Prévia. Ademais, cabe salientar que o PBA inclui também ações voltadas ao acompanhamento dessas comunidades, como o Programa de Comunicação Social, o Programa de Educação Ambiental, o Programa de Saúde das Populações Circunvizinhas, dentre outros, nos quais o empreendedor possui a obrigação de apresentar relatórios semestrais à SEMACE, evidenciando a execução, acompanhamento e monitoramento de tais planos.

Destacamos que todo o processo de licenciamento ambiental foi conduzido com a máxima responsabilidade e transparência, e todas as medidas necessárias foram tomadas para garantir a proteção do meio ambiente e das comunidades afetadas pelo projeto.”

As Termelétricas no Ceará

O Ceará abriga 5 termelétricas movidas a combustíveis fósseis:

UTE Porto do Pecém I (EDP Energias do Brasil S.A.)
UTE Porto do Pecém II (Eneva S.A.)
UTE Fortaleza (Enel Brasil S.A.)
UTE Termoceará (Petrobrás)
UTE Maracanaú I (Bolognesi Energia S.A.)

Em 2021, dentre todas as termelétricas do Brasil ligadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), a UTE Pecém I foi a que mais emitiu dióxido de carbono equivalente (CO2e), ao liberar 3,5 milhões de toneladas de CO2e e ocupar o 1º lugar no ranking de emissões, de acordo com o 2º Inventário de Emissões Atmosféricas em Usinas Termelétricas do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA).

As termelétricas (UTEs) são empreendimentos que queimam combustíveis fósseis, geralmente carvão mineral, gás e óleo, para a produção de energia elétrica. No caso do Pecém, as UTEs Pecém I e II são movidas a carvão; as UTEs Fortaleza e TermoCeará são movidas a gás natural; e a UTE Maracanaú é movida a óleo combustível. A UTE Portocem também planeja utilizar um combustível fóssil, que apesar, de chamado de “natural”, parecendo se tratar de uma energia mais “limpa”, é um combustível fóssil altamente prejudicial à população e ao meio ambiente, potencializando a já tão agravada crise climática.

Na saúde, há diversos materiais e relatos que registram mortes por câncer, doenças de pele e doenças respiratórias acometidas em crianças, jovens, adultos e idosos que moram no entorno do CIPP.

O Ceará e as Mudanças Climáticas

O Nordeste, juntamente com o Norte, é a região do Brasil que deve ter o clima mais impactado pelas modificações climáticas resultantes do aquecimento global, segundo relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas de 2016, primeiro relatório de avaliação nacional. A previsão é de diminuição dos recursos hídricos a partir da redução das chuvas e do aumento da evaporação dos reservatórios de água, tornando mais frequentes episódios de seca. Os principais impactos incluem: modificação no padrão de chuvas, elevação da temperatura, perda de safra agrícola, elevação do nível do mar, maior ocorrência de problemas de saúde, como as arboviroses, e aumento da desertificação na Caatinga. Nesse cenário, a própria viabilidade das termelétricas, que precisam de grandes quantidades de água para funcionar, fica em risco.

Os impactos das indústrias emissoras de gases de efeito estufa no Planeta são levantados anualmente pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Em relatório publicado em março de 2023, o IPCC alertou que as emissões de gases de efeito estufa devem ser reduzidas em 48% até 2030 para que a humanidade seja capaz de frear a crise climática.

O IPCC ainda alerta para a necessidade de ações concretas de combate às mudanças climáticas, se quisermos ter um “futuro habitável na Terra”. Nesse sentido, a atenção aos impactos locais é de fundamental importância, e, infelizmente, a insistência do Ceará em instalar novas termelétricas a combustível fóssil registra que estamos na contramão do futuro.

“Clima de Urgência”

O Instituto Verdeluz lançou, por meio do projeto “Clima de Urgência”, o livro “Entrando em clima de urgência no Ceará: sem tempo para termelétrica”. Organizado por Sarah Lima e Fernanda Araújo, a obra tem como proposta unir os saberes científico, ancestral e popular para denunciar os impactos das termelétricas do Pecém, além de contar sobre a resistência histórica dos movimentos socioambientais, principalmente do povo indígena Anacé, frente aos problemas causados pelo Complexo Industrial. Como um dos materiais de apoio para a construção do livro, os autores contaram com a série de reportagens Termelétricas no Nordeste produzida pela Eco Nordeste sobre os impactos socioambientais causados pelas Usinas Termelétricas na Região.

O Verdeluz surgiu em 2013 com a missão de reconectar as pessoas à natureza, por meio de ações de ativismo, conservação e educação ambiental. A organização conta com projetos de conservação de tartarugas marinhas; educação ambiental; estudos da problemática dos resíduos sólidos; participação em conselhos gestores de unidades de conservação, advocacy com incidência em políticas públicas e ativismo climático. Em quase dez anos de atividades, mais de 500 voluntários passaram pela ONG.