Com uma grande dose de irreverência, Cláudio Rodrigues passa por estes 19 contos nos entregando uma narrativa dividida em duas fases sobre o ser “bixa”: as crianças, categorizadas como aflitas pelo autor, e os adultos, que se encontram sem rumo. As memórias das personagens poderiam compor uma memória coletiva, visto que há um ponto de interseção gay, um emaranhado de vivências comuns.
Sejam estes de onde forem, os contos de Flor do aguapé podem ser compreendidos também como um pequeno romance, pois que há um fio condutor entre as narrativas. Além das dores descritas nesses dois momentos da vida dos personagens, o leitor também se depara com o triunfo dessas “bixas”, esbarrando na ideia, também coletiva, de “viado”, que, depois de tanto apanharem, renascem como a fênix. Ou ainda, como o próprio título, estes personagens são as flores que nascem do brejo, lindas e imponentes, contrapondo-se ao ambiente hostil.
Pra início de conversa, ou melhor, pra quem ainda não sabe, acho bom dizer que bicha é uma palavra babadeira, coletivíssima, um bonde chamado desejo, cheio de gente das mais variadas formas, expressões e modos de ser.
As bichas, meu bem, nunca aceitariam o singular, porque mesmo uma pode se multiplicar em 2, 4, 8, 16, 32, 64... Uma progressão geométrica de bichas.
Desde que o mundo é mundo, tem bicha por aí. Mas é incrível como em pleno século XXI ainda há quem não entenda porra nenhuma do ser-bicha. A bicha é sempre um devir. Devir-bicha.
Sim, porque bicha é uma entidade. Ela incorpora, baixa, toma conta de um corpo e sai por aí, transgredindo. Às vezes é quase um ciborgue, ou uma caixa de pastilhas de aquarela. Tem bicha de todas as cores. Só não tem bicha cinza! De cinza já basta a vida escrota em que nos meteram.
Então, pra não virem com história que a gente não sabe ser refinada e cult (meu cu!), vou me utilizar da Aurélia, a dicionária da língua afiada. Sim senhoras, existe uma dicionária da língua das bichas, monamour, e comprovo isso usando um expediente refinadérrimo, a nota de rodapé, que nada mais é do que jogar pra debaixo do tapete, digo, da página, certas coisas pros curiosos verem depois. Tá achando que a gente é bagaceira? Somos finíssimas, as deusas da porra toda, que digam Linn da Quebrada, Pablo Vittar, Glória Groove, Amara Moira, Waldo Motta, Glauco Mattoso, João Silvério Trevisan, Luiz Mott, Marcelino Freire, Laerte [diva das divas] e tantas outras que fizeram e fazem carreira.
Mas eu queria mesmo era um dia erigir um panteão a todas as que já se foram. Tiraria aquele monumento aos bandeirantes, por exemplo, e colocaria no lugar um monumento às bixas brasílicas revolucionárias, começando por Xica Manicongo até chegar em Dandara dos Santos, a borboleta perpétua.
Quanto a Aurélia, favor não confundir com a do romance do senhor Alencar; a senhora aqui é outra. Aurélia é, sim, nome da dicionária das bichas, e é também um verbete com quatro acepções, que passo a citar, porque sou dessas com furor acadêmico: “1. Bicha metida a conhecedora profunda do bajubá, jurando que sabe tudo; 2. Bicha filóloga, lexicóloga, eloquente, googleóloga, control-efóloga, eustômica, disléxica, prolixa e extremamente divertida; 3. Bicha rica, dona da ilha, que não tem medo de comprar os maridos, uns seixas; 4. Meu eu”.
Será que eu me encaixo em uma dessas Aurélias? Ai ai.
A dicionária diz que Bicha é um substantivo feminino que significa homossexual masculino, gay, viado. Homem efeminado. De modo familiar, há a BIBA, que, quando é muito biba, a gente chama de BIBÍSSIMA, ou, “relativo a uma bicha extremamente bicha. O termo também é usado, sempre no feminino, para tudo que se relacione a qualquer coisa chamativa dessa bicha. Por exemplo, a monga chega a um local com seu novíssimo celular prateado cintilante; então, ouve alguém declamar: Bibíssima esse seu celular, Gustafa! Você se superou!”.
Mas a palavra bicha pode sofrer variações, a maioria na modalidade composta, a começar pelo Bicha-bicha, que é uma “bicha ao quadrado”, ou melhor, uma variante da Bicha-viada, aquela “bicha-bicha em si propriamente dita”. Vocês já ouviram falar da Bicha-bode? Pois ela é aquele “homossexual não efeminado, mas nem sempre ativo”. Tá cheio por aí, né? Tem também muito de Bicha-cadela por aí, que é o “homossexual libidinoso, que transa muito e com muitos parceiros; lacraia”. Já ouviram falar da Bicha alpinista social ? É a “homossexuellen que quer ser rica a todo custo. Na escala darwinista, ela seria a antecessora imediata da bicha fina”. Não sei direito, mas pode ser que essa seja uma bicha apresentável, diferente da Bicha-pão-com-ovo, que nem preciso dizer o que significa, e nem vou citar a Aurélia porque o verbete é muito grande, escorrido demais o babado.
Como se vê, os termos compostos e derivados a partir da palavra bicha se referem a vários modos de ser, de viver e de se constituir a vida bicha. E isso tem a ver com classe, raça, crença, posicionamento político e o que mais se puder imaginar. É muita bichice, né. Eu confesso que sou o tipo de Bicha de época, “bicha antiga, machadiana, vintage, gongórica”, que tá na mesma linha da Bicha de antiquário, aquele “gay que só faz compras em brechós; bicha vintage”. Também me incluo na BICHA DE BLAIR, “que usa o bajubá todo errado…”. Vou confessar que fico longe da Bicha quá quaá quá “1. não tem classe e não sabe se comportar nos locais públicos, 2. homossexual sem valor ético, sem moral”, é a típica Bichega.
Enfim, bicha não é tudo igual, não se comporta do mesmo jeito, não é amapoa maria-vai-com-as-outras. Até suspeito que, toda vez que uma bicha nasce, o mapa celeste se desenha com exclusividade para ela e o sol vaticina: “vai, bicha, ser bafônica na vida!”
E só pra deixar claro: bicharada na Aurélia não tem nada a ver com o sentido que os dicionários machos empregam. Aqui ela significa “coletivo de bichas; viadeiro”. Pois é exatamente o que esse livro é.
Cheiro na pinta!
Cláudio Rodrigues*
Prólogo do livro
bichas
*Cláudio Rodrigues, autor do livro Flor de Aguapé, é maranhense de Lago da Pedra, terra das palmeiras onde canta o sabiá e dança o bumba meu boi. Tem mestrado e doutorado em teorias da literatura (UFF e UFRJ), é professor adjunto de literatura brasileira na Universidade Federal do Ceará, onde coordena o Grupo de Estudos da Língua de Eros e pesquisa o erotismo na representação dos sujeitos dissidentes.
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