A laranja produzida na Califórnia a partir de mudas baianas - Foto: Forest Starr and Kim Starr | Flickr/Creative Commons
No dia 29 de março, a cidade do Salvador completa 473 anos de existência. Ela foi registrada como São Salvador da Bahia de Todos os Santos, depois ficou como São Salvador, e hoje nós a chamamos de Salvador, a nossa Soterópolis, que vem do grego soterion (salvação), mais polis, que é cidade. E quem nasce em Salvador é soteropolitano, que é muito chique!
Essa jovem cidade é uma criança, se comparada aos mais de 7 mil anos de história das antigas cidades erguidas na Mesopotâmia, onde temos, hoje, o Irã, o Iraque e a Síria. Nesse “pouco” tempo de vida, no entanto, a nossa menina já acumula belas e tristes histórias, e para crescer de tamanho devorou, avidamente, a sua própria fauna e flora, e dizimou os povos indígenas que habitavam o seu redor.
Ela presenciou o horror da escravidão dos africanos e seus filhos aqui nascidos, mas também os acolheu em suas matas para protegê-los de seus algozes.
Desde cedo ela mostrou várias faces, escancaradas em dor ou em festa, em choro, em riso e em medo, mas também em pobreza, fome e injustiça. As águas sempre lhe foram generosas: o mar, que lhe beija os pés e lhe fornece rico alimento; as lagoas, com suas águas escuras e encantadas; os rios, que correm em seus vales sinuosos; e as nascentes, muitas, que brotam das encostas. A generosidade dessas águas também faz fértil a sua terra de onde brotam frondosas árvores com doces frutos o ano inteiro.
Ao longo da sua história, a cidade produziu alimentos não só para seus moradores, mas também para exportação.
Além da produção de cana-de-açúcar, de pequenos agricultores, o miolo da cidade produzia verduras, hortaliças e frutas. Assim aconteceu com a famosa laranja de umbigo, ou laranja-da-Bahia, uma mutação por meio de enxerto que cresceu nas chácaras do Cabula a partir do século XIX. Muito gostosa, suas mudas eram disputadas e foram levadas para a Califórnia, nos Estados Unidos, onde são chamadas de Washington Navel, e para outros países.
O perfume dos laranjais se espalhava pela cidade e encantava os viajantes que aqui chegavam. Os negros de ganho, escravos ou livres, as transportavam em cestos nas cangalhas dos jumentos e ou burros, e percorriam os bairros da cidade cantando laranja, laranjinha doce!
Mas havia carestia dos alimentos também, como em 1858, na Revolta da carne sem osso, farinha sem caroço, quando uma multidão, revoltada por conta dos aumentos dos preços desses dois itens básicos para a alimentação dos soteropolitanos, invadiu a Câmara Municipal e foi uma confusão total.
Na segunda metade do século XIX a palavra de ordem era modernização, transformar a velha cidade, destituída de saneamento básico e tão marcada pela arquitetura colonial, numa urbes que tivesse as melhorias semelhantes ao que ocorria na capital, o Rio de Janeiro, ou em Lisboa e Paris.
Então, começa o processo de implantação dos trilhos de bonde e da ferrovia, uma necessidade de interligar os bairros e conectar a cidade com o interior. Elevadores da Conceição e do Taboão e o plano inclinado Santa Isabel (Gonçalves) foram instalados para melhorar a ligação entre os dois níveis da cidade.
A Companhia de Águas do Queimado, que promoveu o primeiro fornecimento de água potável para os soteropolitanos, também foi outro suspiro de modernização, apesar de atender a poucos edifícios na cidade. Foram implantados 22 belos chafarizes importados da Europa nas praças da cidade, dentre eles o do Terreiro de Jesus.
Lago da Companhia do Queimado (Gaensly, 1880).
Mas a modernização não trouxe o avanço necessário do saneamento básico, então, ao mesmo tempo em que suas terras eram ocupadas por construções, matas desapareceram e rios tornaram-se esgotos a céu aberto. Ao longo do século XX, a menina passou por grandes transformações que reestruturaram o seu traçado urbano.
As Avenidas Sete de Setembro e a Oceânica, bem como a ampliação do porto de Salvador, com a execução de grandes áreas de aterro, todas na gestão do governador de José Joaquim Seabra, foram os maiores investimentos realizados pelo poder público, nas primeiras décadas do século XX, para criar a feição moderna da cidade.
Na década de 1940, o Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (EPUCS), capitaneado pelo engenheiro Mario Leal Ferreira, escancarou as mazelas da menina, sua pobreza representada pela ausência de saneamento básico, pela carência de habitações dignas para a população de baixa renda. Um imenso legado, ao mesmo tempo humanista e tecnicista.
A partir de 1950, os vales tornaram-se largas avenidas. A primeira delas foi a Avenida Centenário, projeto do arquiteto e urbanista Diógenes Rebouças, com base nos estudos e projetos do EPUCS; depois vieram outras avenidas: Heitor Dias, San Martin, Contorno, Vasco da Gama. Hoje são muitas, em vales e cumeadas.
Os antigos vales, geralmente ocupados por roças com plantações de árvores frutíferas, e servidos por água dos riachos e minadouros naturais, também eram habitados por camadas pobres, muito pobres, com suas casas de sopapo, cobertas de palhas de coqueiro. Para onde foram? Essas obras, aliadas àquelas executadas na orla marítima, determinaram o deslocamento de antigos moradores para outras áreas da cidade, com certeza, sem infraestrutura.
Como crescer sem matar sua própria natureza? Sem dúvida, Salvador perdeu, ao longo dos seus 473 anos, qualidade de vida, pois é visível a sua degradação ambiental, que, unida à pobreza urbana, revela uma cidade com sérios problemas de acesso à moradia digna, com os serviços de saneamento básico e ambiental necessários para que ela saia dos objetivos da “modernização” e alcance as premissas da sustentabilidade imprescindíveis para entrar no século XXI.
Então, se ela é uma menina, ainda há tempo de mudar seu destino. Aprender com as mais velhas, que poluíram os rios e dizimaram as florestas, erradicaram o convívio com a natureza. Tantas são as cidades que estão recuperando os seus rios, revendo seus processos de urbanização!
Sabemos que não será fácil, mas não impossível, contudo, o primeiro e fundamental objetivo é claro: todos os soteropolitanos têm direito à moradia digna, ao transporte público eficiente, ao lazer prazeroso, à segurança, enfim, à cidadania. Parabéns, minha querida cidade!