Ontem entrei no cinema sem a menor ideia do que me aguardava.
Um longíssima metragem excepcional, Drive my Car é um longa “fitness”, pois nada nele excede, nem uma gota de minuto a mais do que as três horas absolutamente necessárias.
Do diretor Japonês Ryûsuke Hamaguchi, o filme fala da comunicação e da polifonia da alma.
Comunicar aquilo que nos vai a alma é ao mesmo tempo um ato de auto revelação e de conexão, o que nos leva a conclusão que só conseguimos nos compreender por intermédio do outro.
Quando um segredo acontece entre Oto e Yusuke, a morte é anunciada.
Perde-se a confiança, não porque houve uma traição, mas porque o tecido da comunicação foi rasurado pelo silencio do não dito.
Agir como se nada tivesse acontecido para manter a normalidade das coisas é uma recusa a acolher a polifonia da alma e configura em si a maior traição.
Yusuke segue sua trajetória, agora solitária, com a voz de Oto numa fita cassete marcando as falas da peça Tio Vania, do dramaturgo russo Anton Tchécov.
A peça fala da escolha impossível entre traição e segurança. Yusuke vai a Hiroshima dirigir a peça e recebe a imposição de ter um motorista para dirigir seu carro, uma motorista na verdade, Misaki.
O inicial desconforto de ter alguém que termina participando de seus momentos de “silencio falado” através da fita cassete é paulatinamente substituído por revelações pessoais e por sombras ao sol.
Em um crescente, Yusuke e Misaki vão se revelando um ao outro e a si mesmo nas suas idiossincrasias encontrando assim suas semelhanças. E suas maiores dores.
Em paralelo, a peça segue em múltiplas linguagens, atores de diversos locais e línguas, inclusive a não falada. E cabe a Yusuke fazer deste elenco multifacetado um todo múltiplo e inteiro.
Uma passagem é especialmente arrebatadora, aquela em que Koji revela a Yusuke o final da história que Oto não contou. E que se precipita sendo a história do próprio Koji que foi revelado através das câmaras de segurança.
Assim, Yusuke tem uma decisão a tomar: suspende a peça ou assume o seu lugar nela.
Nila Maria é medica cardiologista e psicoterapeuta. Amante das artes, especialmente a literatura e o cinema, escreve sempre quando as coisas dentro dela precisam de clareza e expressão