Gina Marocci

As encostas de Salvador deslizam em dias de chuva desde o séc. 18

O problema de deslizamento de terras das encostas da cidade é antigo

Quando eu morava no Rio Vermelho, defronte ao mar, dava para sentir a mudança de estação, o final do verão, ao sentir a força das marés e dos ventos vindos do oceano.

O outono chegava com fortes ventos e ondas altas, que batiam estrondosas nas pedras e enchiam o ar de pequenas partículas de areia e conchas, que se depositavam no chão do quintal. A temperatura caía e as sombrinhas e guarda-chuvas faziam parte do nosso dia a dia.

As chuvas chegavam mais constantes no mês de março e nos acompanhavam até o inverno. Não sinto mais as águas de março como antes e parece que o verão tomou posse do outono. As chuvas que caem não encontram um caminho para retornar à Mãe Terra, então, em protesto, invadem com toda força ruas, casas, e mostram a fragilidade do nosso formigueiro.

Em dezembro de 2021, as chuvas atingiram fortemente Salvador e mais de 60 cidades baianas deixando famílias enlutadas e desabrigadas, pessoas que perderam tudo que construíram ao longo de uma vida de trabalho. Essa notícia não é incomum para nós soteropolitanos, mas a abrangência dos estragos nos deixou estarrecidos.

Agora, no mês de março, o volume de chuvas que caiu em Salvador, em menos de 10 dias, já superou mais da metade da média para este mês, árvores caíram e ruas ficaram intransitáveis, o que fez a cidade entrar em estado de alerta de deslizamentos e alagamentos.

A morfologia de Salvador, com seu relevo marcado pela presença de espigões e vales e o clima tropical quente e úmido, contribuem para a ocorrência de deslizamentos de encostas e, consequentemente, desabamentos de edificações construídas em áreas íngremes não urbanizadas. Por isso, o poder público institui a partir de março a chamada Operação Chuva, que se estende até junho, com ações preventivas que visam minimizar os danos provocados pelas chuvas.

O problema de deslizamento de terras das encostas da cidade é antigo. Alguns relatos tratam de incidentes ocorridos a partir do século XVIII, quando Salvador se estendia ao longo da primeira cumeada, que compreende a encosta voltada para o mar, lugar escolhido pelos portugueses para construir a cidade fortificada. Constantemente corria terra em algum ponto da Cidade Alta deixando sempre temerosa a sua população.

Na Cidade Baixa, próximo à encosta, a ocupação se desenvolveu rapidamente, construindo-se armazéns e casas de negócios. Preocupava às autoridades a possibilidade de acontecer um desastre de grandes proporções sobre as ruas da área comercial, de conhecido movimento.

Para tentar reduzir os riscos, ainda na primeira década do século XVIII, foi necessário retirar o revestimento de pedra da fachada da catedral (a antiga Sé) a fim de diminuir a carga sobre a montanha. As muralhas de sustentação da montanha foram recuperadas em alguns pontos. Porém, em 1721, após muita chuva, a terra correu sobre o casario da Preguiça e da Conceição.

Acorreu de imediato a Câmara, executando obras de reparo para a contenção das terras, mas em 1732 um novo acidente aconteceu, tendo como resultado a morte de 7 pessoas. No trecho do frontispício da cidade, desenhado pelo engenheiro militar José Antônio Caldas, em 1759, dá para perceber um deslizamento à frente da antiga Sé.


Trecho do frontispício da cidade que mostra a antiga Sé

Apesar do relacionamento conflituoso entre a vereança e o governo da capitania, algumas obras foram realizadas em parceria. Isso ocorreu em 1737, no socorro às vítimas do desabamento de terras do alto de Santo Antônio Além do Carmo, que soterrou várias casas localizadas no Pilar, provocando a morte de dezenas de pessoas.

Todo o trabalho de auxílio às vítimas, resgate das mercadorias dos trapiches e desobstrução da única via que ligava Itapagipe à área comercial, foi realizado pelas duas esferas de poder, mas a obra levou mais de 20 anos para ser concluída!

As ladeiras de acesso à Cidade Alta também eram um problema. Sem calçamento e íngremes, as ladeiras da Preguiça, Conceição, Misericórdia e Taboão, com as chuvas ficavam impraticáveis.

As obras da muralha da ladeira da Misericórdia foram concluídas apenas no final do século XVIII, na gestão de D. Fernando José de Portugal (governador da capitania, 1788-1801).

Para o final do século XVIII, outro engenheiro militar, Manuel Rodrigues Teixeira, elaborou um projeto maior de melhoramentos para a cidade do Salvador.

Apesar de não estar datado, é possível que seja de 1786. Pretendia-se construir uma contenção para a encosta, que atingisse o Cais da Misericórdia até as proximidades da área onde existia o guindaste dos padres jesuítas, onde temos o Plano Inclinado Gonçalves.

O texto explicativo do autor do projeto fala de uma extensão de 500 palmos (110 m) e 25 palmos de altura (5,5 m) para a contenção. O título deste trabalho é Prospecto visto pela frente de sua porção da Cidade da Bahia no qual se mostram os edifícios compreendidos na parte superior, e inferior da mesma cidade, as ruínas que se acham no prolongamento do seu monte; e projeto do novo paredão para conter o empurrão das terras que ameaçam queda sobre toda extensão baixa. No alto, à direita, pode-se ver a antiga Catedral sem as torres e sem o revestimento de pedra retirados para reduzir o peso sobre a encosta.


Trecho do projeto de Manuel Rodrigues Teixeira para contenção da encosta metre a Sé e o Terreiro de Jesus

Nos invernos de 1812 e 1813, muitas pessoas morreram por causa do desabamento de terras sobre as casas próximas à montanha. Em 1813, após 45 dias de chuva um muro de sustentação de uma casa desabou sobre o trapiche Barnabé, na Cidade Baixa, matando 34 pessoas.

Outros desabamentos aconteceram ao longo da encosta, na Misericórdia, na Conceição e na Gamboa.

O frontispício de Salvador, desenhado em 1801 pelo professor português Luís dos Santos Vilhena, teve como base o desenho de José Antônio Caldas (1759).

Ao compararmos os dois desenhos vemos que o trecho da encosta defronte à antiga Sé apresenta um escalonamento, ou seja, uma intervenção possivelmente pata conter a terra e evitar um novo deslizamento.


Trecho do frontispício de Salvador de Luís dos Santos Vilhena (1801)

Ao longo dos séculos XIX e XX, em várias regiões da cidade, os deslizamentos de encostas e desabamentos de edificações sobre elas levaram muitas vidas.

Certamente é mais fácil culpar as chuvas, mas há vários pontos a considerar, que rendem um texto à parte, como a histórica ocupação desordenada das encostas, a tipologia arquitetônica das edificações sobre elas ou a falta de saneamento básico.

O que é ponto pacífico é que a solução depende de um trabalho conjunto entre cada comunidade, o poder público, pesquisadores e profissionais capacitados.

Para saber mais

SOUZA, A. R. DE. História Política e Administrativa da Cidade do Salvador. SALVADOR: Tipografia Beneditina, 1949.

MAROCCI, G. V. P. O iluminismo e a urbanística portuguesa: as transformações em Lisboa, Porto e Salvador no século XVIII. 2011. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.