Nordeste

Soldadinho-do-Araripe está em risco 25 anos após ser descoberto

A ave é considerada em perigo crítico

Foto: Fábio Nunes | Agência Eco Nordeste
A ave só habita o Cariri cearense

Quem chega à cidade do Crato, na região do Cariri cearense, logo se depara com as mais diversas manifestações artísticas que estampam um pássaro branco, com topete vermelho vivo, pequenos detalhes negros e olhos grená. Basta dar poucos passos no entorno da Igreja Matriz para ver o Soldadinho-do-Araripe (Antilophia bokermanni) impresso nos muros.

A ave é um dos símbolos da campanha encabeçada pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) Ceará para tornar a Chapada do Araripe patrimônio da humanidade junto à  Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Dentre tantas particularidades naturais da Chapada, é lá o único lugar no mundo onde habita o Soldadinho-do-Araripe.

Os passarinhos pintados nos muros pela cidade, contudo, são uma característica relativamente recente. Há 25 anos, a espécie sequer havia sido descrita cientificamente. Neste 15 de dezembro celebramos o 25° ano desde a descoberta do Soldadinho-do-Araripe, ave considerada Em Perigo Crítico pela Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), cujo o último censo de população, realizado em 2018, estimou apenas 420 indivíduos.

No fim deste ano tive a oportunidade de conhecer a Reserva Oásis Araripe, Unidade de Conservação situada no município do Crato, administrada pela  Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis) com o intuito de contribuir para a conservação desta espécie. Lá, fui recebida e orientada por Weber Girão, pesquisador que, junto ao cientista Galileu Coelho, descreveu a ave pela primeira vez, ainda enquanto estudante universitário, e que há 18 anos empreende esforços em prol da conservação da espécie. 

“Eu era estudante de Biologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi quando participei de uma aula de campo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com o professor Galileu Coelho. Ele já tinha ouvido a ave, mas faltava ver. Fui com ele e vimos juntos. Ele foi generoso em me convidar para descrever a espécie. A descoberta foi no fim da viagem. Peguei o ônibus na rodoviária do Crato e passei a noite com a visão da ave branca na mente. Ainda me esforço para estar à altura daquele momento, tentando agradecer ao não admitir sua extinção,” recorda.

Durante a visita à Reserva Oásis, mata adentro, a fim de avistar a espécie, ouvi seu canto antes mesmo de visualizá-lo entre as frestas de luz e os galhos mais altos das árvores. Trata-se de uma ave territorialista, que ocupa sempre os mesmos espaços na floresta. À medida que caminhava pela trilha, seu canto se fez mais forte e mais próximo. Ali estava ele, diante dos meus olhos. Ou melhor, eles. 

“Para cortejar a fêmea, o macho encena um teatro junto a outro macho da espécie. Um persegue o outro voando em círculos na intenção de chamar a atenção dela.” explicou Vitória Camelo, pesquisadora que me guiou pela trilha. E foi exatamente esta a cena que vi: dois Soldadinhos-do-Araripe em pleno teatro, em voos circulares para cair nas graças de uma fêmea tímida, verde-oliva que apareceu entre os galhos, segundos depois. O amor estava no ar para os passarinhos. Um verdadeiro espetáculo da vida selvagem ao vivo e em cores tão bonitas que só as aves possuem.  Uma cena de encher o coração de alegria.

Extasiada após essa experiência tão marcante como jornalista e apreciadora de pássaros,  conversei com Weber Girão para aprender mais sobre a espécie nativa daquele pedaço do Ceará. De acordo com o pesquisador, uma das principais ameaças para a conservação do Soldadinho-do-Araripe é a qualidade da floresta quanto à presença de espécies de plantas típicas da alimentação da ave e a escassez hídrica, já que as fêmeas fazem seus ninhos e habitam matas de entorno de nascentes.

Como principais estratégias de conservação, o pesquisador destaca o investimento em Unidades de Conservação, para garantir a preservação legal de áreas onde habita a espécie e a manutenção da qualidade de nascentes e florestas, inclusive com o plantio de mudas de plantas que fazem parte da dieta da ave. Em poucas horas de conversa, compreendi que a ave possui muitas particularidades, o que a torna ainda mais incrível e rara.

Na ocasião, em plena estação reprodutiva, Girão comemorou a postura de dois novos ovinhos encontrados em ninhos na mata. Dias depois, em homenagem aos 25 anos de descoberta do Soldadinho-do-Araripe, o pesquisador escreveu e enviou à Eco Nordeste, um relato recente e interessante de sua lida para salvar a espécie, além de muito oportuno para a data:

Do ovo ao voo em três ninhos

Era noite de 22 de novembro de 2021. Eu roía as unhas quando o ônibus finalmente chegou à rodoviária de Crato – cidade cearense ornamentada pela Chapada do Araripe. O planalto é famoso por revelar fósseis de aves entre as mais antigas do mundo (113 milhões de anos ou mais), e também por abrigar um dos pássaros neotropicais de origem mais recente (onze mil anos), sendo este último cientificamente denominado Antilophia bokermanni e conhecido no Brasil como Soldadinho-do-Araripe.

O povo local lhe emprega outros nomes, como lavadeira-da-mata, levadeiro e língua-de-tamanduá. Trata-se de uma bela espécie em risco de extinção com a qual estou envolvido há 25 anos, mas minha ansiedade decorria por outro motivo: ter sido convidado a participar do repovoamento de um periquito de nome cara-suja (Pyrrhura griseipectus) também ameaçado.

Nosso destino, meu e do periquito, era a Serra da Aratanha. Ela é próxima da capital cearense, mas distante de onde eu me encontrava, tanto que eu a veria de dentro do ônibus apenas quando o dia amanhecesse. Deixei a Chapada do Araripe sem aflição, pois outro time formidável estava monitorando os dois primeiros ninhos de Soldadinho-do-Araripe desta estação reprodutiva.

O que eu não imaginava era o tamanho da tempestade que se abateria sobre os quatro frágeis ovos naquela noite. Sobre o riacho, como a fêmea prefere fazer, constava um ninho à montante e outro à jusante. O primeiro foi arruinado pelo aguaceiro, partindo-se a forquilha que o estruturava. Um dos ovos despencou para a morte, enquanto o outro escapou por pouco, quando foi localizado pela equipe que me avisou por telefone.

Junto com eles, mas à distância, decidimos deitar o ovo no ninho à jusante. Era o melhor a ser feito. No começo do ano, tínhamos praticado algo similar, mas não tão complexo, pois já havíamos retirado um de dois filhotes de um ninho inseguro, destinando-o para outro ninho protegido onde havia uma vaga. A ninhada tripla seguiu sendo chocada, sem termos a certeza absoluta de que o calor seria suficiente para todos, pois as fêmeas desta espécie só põem dois ovos.

Em poucos dias, o filhote adotado eclodiu de seu ovo. Nosso alívio deu lugar ao temor de que, saindo a mãe para buscar alimento, o par de ovos legítimos daquele ninho poderia resfriar até a morte. Comigo de volta à Chapada, findamos por improvisar uma chocadeira para onde recolhemos os ovos. Logo eclodiu o primeiro, sendo imediatamente devolvido.

No dia seguinte, a história se repetiu, e agora tínhamos três filhotes em um ninho, um deles com quatro dias de idade a mais. A mãe biológica-adotiva fez sua parte, cuidando dos três, sem saber que gerava dados inéditos ao manejo da espécie ameaçada de extinção.

A beleza daquilo tudo cedia espaço para nova tensão. Os filhotes crescem rápido e logo aquele ninho ficaria pequeno demais. Tentamos alguns experimentos interessantes, como o acoplamento de um ninho extra que não resolveria o problema de aquecimento noturno. Buscamos ainda os ninhos de uma espécie próxima que serviria de babá, mas sua estação reprodutiva ainda estava no início.

Findamos tendo de resgatar o filhote adotado de seu segundo ninho de volta ao primeiro, que agora estava surrado dentro da chocadeira. A equipe mantinha cuidados constantes ao mesmo tempo que procuramos um raro ninho com vaga, de mesma idade.

Nesse meio tempo, na tarde de 8 de dezembro, eu participava de reunião do Conselho Consultivo de uma Unidade de Conservação, quando um informe sobre ninhos encontrados noutro município me fez perguntar: algum desses ninhos teria apenas um filhote? Diante da resposta positiva, pedimos fotos para saber se as idades eram compatíveis, e eram!

Às 6 horas da manhã do dia seguinte, o filhote já havia sido adotado em seu terceiro ninho, onde segue crescendo e deverá começar suas aulas de voo no dia 15 de dezembro – precisamente na data de descoberta da espécie.

Temos a prática de colocar anilhas coloridas nas aves que passam por nossas mãos, além de dar-lhes nomes de pensadores e cientistas. O filhote de três ninhos foi apelidado de Thoreau, em referência a Henry David Thoreau (1817 – 1862), ambientalista que promoveu importantes revoluções apenas com as ideias registradas em seus livros.

Quem visitar o município cearense de Barbalha poderá conhecer as Unidades de Conservação sobrepostas do Parque Natural Municipal Luís Roberto Correia Sampaio / Monumento Natural Riacho do Meio, onde o Thoreau poderá ser observado com sua anilha marrom. Sua espécie conta com uma estratégia de conservação ininterrupta, entre as mais antigas do Brasil, mas que ainda não foi capaz de reverter seu quadro de ameaça.

Novos capítulos dessa história estão sendo escritos, Um Plano de Ação Territorial para a espécie e outras associadas está previsto para 2022, logo após a publicação da Lista Estadual da Fauna Cearense Ameaçada de Extinção, ou Lista Vermelha. São políticas públicas baseadas em ciência, apoiadas pelo Programa Cientista Chefe, do Governo do Estado do Ceará.”

Do cortejo de conquista para o acasalamento à fêmea que excepcionalmente cuida de três filhotes, sendo um adotivo. É com esses relatos de experiências que se expressa o desejo , tanto de quem descobriu e descreveu a espécie quanto de quem teve o soldadinho-do-araripe diante dos olhos 25 anos depois, de que venha um 2022 de nova geração da ave, e que o Língua-de-tamanduá esteja cada vez mais distante de se extinguir da natureza.