Paulo de Tharso. Teve um período que a gente o chamava de Picanha (que é um personagem de seu livro O Dia de Santa Bárbara - o detetive Mauro Picanha). Marião o apelidou. E ele tinha uma relação de amor e ódio com o apelido. Assim como tinha essa relação intensa, febril, arrebatada com tudo que existe neste mundo (seu gato Félix era prova disso). E em muitos outros... Mundos. Porque Paulo não caberia apenas num planeta.
Quando nos conhecemos já foi dramático. O meu carro tinha dado pau, e minha irmã Graziella, que fazia especialização em ortopedia infantil na Santa Casa, mal usava o dela, então, ela me deixava à vontade para pegar sua caranga sempre que eu precisasse. E eu pegava. E numa noite preta e nebulosa e sem estrelas: fui direto pro Sebo do Bac. No Satyros 2. Acho que tinha ido assistir "Homens, Santos e Desertores", pela terceira, quarta vez. Por aí. Na saída, dei de cara com um figura que gesticulava sem parar, emendava um assunto no outro, e falava de Dom Quixote, de "nós os Chineses", de Jacques Brel, de Léo Ferré, de Danton, da Revolução Francesa, "quem fala né é mané, é mané".
"Paulo de Thaso, muito prazer" - disse ele, segurando minha mão. E a gente foi bebendo ali, no Bar do Trovão. Aquele cabelo do Thunder Satyriano remeteu-me de imediato ao cantor e dançarino Michael Jackson. Mas a um Michael Rock n'Roll. No fim, montamos no carro de minha irmã e zarpamos. Destino: algum bar aberto.
Picanha no banco de trás, reclamando de alguma coisa. Talvez o fato de o Mário estar no banco da frente. Deve ter sido isso. Lembro que tinha comprado, tinha pouco tempo, uma coletânea, recém lançada, do Itamar Assumpção e meti na disqueteira pra gente ouvir. Comentei por alto sobre o disco (CD) do finado e mais que eterno Nego Dito. Paulo, que não podia participar da conversa claramente, ficou puto, passou a falar, falar alto, mais alto que o som do carro, para que eu, todo mundo pudesse ouvir: "O Mário arruma cada amigo burro. Som novo? Novo aonde? O Itamar já morreu. Está morto. Enterrado. Estou cansado disso".
Marião sorriu pra mim, sorri de volta. Aumentei bastante o som para abafar o Picanha. Devia estar tocando algo do tipo "Fico louco, faço cara de mau, falo o que me vem na cabeça". Paulo me reconheceu. Para a minha sorte. Aquilo que Vinicius de Moraes falava sobre amigos. Que não os fazemos. Nós os reconhecemos.
E ele me salvou. Literalmente. Um valentão estava barbarizando num bar no Bixiga, e quando vi aquela covardia, cheguei no cara e pedi pra ele se retirar. Falei: "Bicho, cai fora daqui. Na boa". Ele era um sujeito grande, com uma cara de "eu sou du mal", saca? Mas o fato de eu ter ido até ele e falado olhando em seus olhos o intimidou. O "cara du mal" vazou. E não vi quando ele estava de volta. Foi no momento em que Paulo me abraçou e disse: "Irmão, vou te pedir uma coisa (segurando minha cabeça com força, mas com carinho - e não permitindo que eu olhasse pros lados)... Confia em mim. Você confia em mim? Eu te amo, irmão Cassiano. Vou te pedir para não tirar os olhos de mim".
Fiz exatamente o que meu amigo Paulo me pediu. Senti um mal estar, um frio na espinha, como se a morte tivesse dado uma lambida no meu cangote. Como se meu anjo da guarda tivesse tirado um cochilo. Mas Paulo foi o meu anjo. Tive a sensação de que algo que eu não compreendo e nem saberia explicar: me protegia. Era Paulo.
Só depois fiquei sabendo que o cara estava armado. E com um 38 apontado para a minha direção. Mas quando viu aquela cena, ficou parado por alguns instantes, guardou a arma na cintura, entrou no carro e foi embora. Daí vi que Paulo chorava. Aqueles olhos tristes e sinceros do meu amigo. E eu não consegui me segurar. E Paulo continua salvando minha vida. E vai ser assim até o fim. Porque é assim que são os amigos.
Como escreveu johnny Depp, na orelha do livro Screwjack, de Hunter Thompson... Não me lembro direito o que está escrito, mas não consigo esquecer. Quero dizer, a idéia da coisa eu não me esqueço: "Muito obrigado por tudo, meu pai, meu professor, meu bom amigo.(...) Diversão. Nosso único crime aqui neste mundo é diversão. Sempre diversão".
E Paulo dizia ser ateu, agnóstico às vezes, sempre brincava comigo (que sou católico), me alugando: "E se Deus existir, Cassiano?". "Você já me explicou, Paulo. Se Deus existir a gente se livra dele". E ele caía na gargalhada.
Nunca vou esquecer do seu jeitão (impagável). Mas quando nosso irmão estava mal no hospital: ele (até!) rezou. Ele me viu ajoelhado, numa capela, sozinho, e veio me fazer companhia. De joelhos, do meu lado. Ficou de ombros comigo. Acho que isso deve ser amizade, né? Como eu gostaria que você pudesse ter conhecido minhas filhas, meu amigo! Que você estivesse aqui.