Opinião

Não chore mais

A ciência em geral, e a matemática em particular, podem auxiliar na redução do feminicídio

Cotidianamente, e com muita tristeza, surgem aos montes notícias em jornais e revistas de crimes de ódio contra mulheres. Tal abominável malfeito tem nome: feminicídio, e foi definido pela escritora e ativista sul-africana Diana Elizabeth Hamilton Russell (1938 - 2020) como “a matança de mulheres por homens porque são mulheres” (“the killing of females by males because they are female”) em 1976.

Curiosamente, no ano anterior a esta definição, um grande sucesso musical estourou em todas as rádios ao redor do mundo em estilo reggae único num icônico álbum ao vivo. Tal inesquecível canção foi elaborada pelo cantor e compositor jamaicano Robert Nesta Marley (1945 - 1981) e seu colega Vincent Ford (c. 1940 - 2008), originalmente lançada em 1974 e chamada “No Woman No Cry”.

Tal canção é a mais aclamada por ter sido diversas vezes regravada na história do reggae, embora a impressão, apenas ao acompanhar sua letra, remeta mais a um salmo, um hino de louvor ou uma dolorosa ode ao amor e esperança. Direcionada a uma mulher sofrida, do gueto, consolada e reconfortada em sua tristeza pela separação e perda, pela pobreza e violência, pede-se, entre lamentos, para que não chore mais.

Marley acreditava que a música tem o poder de atenuar sofrimentos e até mesmo curar pessoas. Cantar é de certa forma uma maneira de entender a vida. Foi um mensageiro, um porta-voz, poeta do povo sofrido dos guetos de qualquer parte do mundo, sejam estes da Jamaica ou do Brasil, cantando palavras de amor e esperança.

Não há trégua contra a violência, particularmente aquela que atinge mulheres. Portanto, é preciso estar em vigilância permanente, sem descanso. Há maneiras inteligentes de atacar este doloroso problema, embora seja difícil predizer se um simples ataque pode resultar em futuro feminicídio, dada a diversidade de situações envolvendo potenciais vítimas.

A ciência em geral, e a matemática em particular, podem auxiliar na redução do feminicídio por meio por exemplo de ferramentas de inteligência artificial (IA). Basicamente, basta apenas ter acesso a dados de delegacias ou mesmo do Ministério Público para classificar eventualmente os casos mais graves, separando assim dos demais. Em geral, há um procedimento de preenchimento de formulário por parte da vítima queixosa, que varia de estado para estado.

De toda sorte, são preenchidos dados como: idade da vítima (anos); idade do agressor (anos); tempo do relacionamento (meses ou anos); se filhos (quantos); renumeração (se houver), entre outros, incluindo o sentimento de posse, perseguição(ões), relação da convivência, agressões psicológicas, físicas e certas condições gerais do agressor.

Cada uma destas informações, ordenadas, estabelece o que se denomina um vetor. Tais dados, quando cruzados com as de demais vítimas (principalmente de casos antigos considerados de alta periculosidade), podem resultar numa classificação de riscos que visa auxiliar no tratamento dos casos com maior possibilidade de ocorrência de crimes contra a mulher.

A IA não intenciona tirar do especialista a decisão sobre como proceder em cada caso. Pelo contrário, a matemática por detrás se baseia exatamente nos dados coletados pelos mesmos profissionais e aponta sugestões para casos em que existem muitas variáveis, que em geral dificultam uma análise mais aprofundada. A decisão por humanos deve prevalecer.

Tais ferramentas estão à disposição e podem evitar o desperdício de lágrimas e vidas. Portanto, não deveríamos chorar mais por isso, como bem lembra a versão da canção que o grande músico e compositor brasileiro Gilberto Passos Gil Moreira (n. 1942) compôs em homenagem à célebre canção jamaicana, um hino de amor, de resistência e esperança, contra a opressão. Tudo, tudo, tudo vai dar pé, se Deus quiser.