Chico Ribeiro Neto

Histórias de pensão: o sorriso da dentadura e a baleia empalhada

 
"Atum de novo, dona Cleonice!"
-- Desabafo de um hóspede para minha mãe, que administrava a pensão da Rua Gabriel Soares, 33, Ladeira dos Aflitos, em Salvador

Era década de 60 e uns pesqueiros japoneses pegavam toneladas de atum no mar do Nordeste, onde há um tipo de atum chamado de albacora ou alvacora. Em Salvador, a Rampa do Mercado, junto ao Mercado Modelo, recebia diariamente as cargas de atum, cujo quilo, devido à grande oferta, custava muito barato, uns 8 a 10 reais a preços de hoje. E dona Cleonice descobriu o atum: além de barato, carnudo, praticamente sem espinhas e fácil de temperar. Minha mãe teve que mudar o cardápio, porque ninguém aguentava mais o peixe todo dia. Para nós, da família, tinha um bifezinho escondido quando a gente enjoava de atum.

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Atum me faz lembrar da baleia empalhada que ficou exposta à visitação pública no Belvedere da Sé, em cima de uma carreta, na década de 60. Meu pai Waldemar me levou lá. Era grande a fila para comprar ingresso e ver a baleia. Depois de atravessar umas cortinas pretas você ouvia uma narração com voz soturna: “Ela mora no fundo do mar e chega a pesar 100 mil quilos. Como a baleia não tem guelras, como os peixes, costumam vir até a superfície para respirar. Não percam, a baleia só fica essa semana em Salvador, porque está percorrendo todo o Brasil”.

Foi essa baleia que inspirou o famoso compositor baiano Riachão a fazer a música “Baleia da Sé”, um grande sucesso, onde ele canta: “Eu vi o barrigão, da baleia/ Eu vi o umbigão, da baleia/ Eu vi o rabão, da baleia/ Só não vi uma coisa, diz, da baleia”. Riachão, que morreu em março desse ano aos 98 anos, disse numa entrevista à repórter Paloma Morais, do Portal Metro1, em 20/10/2017, que a baleia foi trazida por um americano: “O povo não conhecia a baleia, via outros peixes, mas não conhecia. Eu tenho a impressão que o americano fez a pesquisa pra saber se a gente conhecia a baleia ou não. Ele descobriu que a gente não conhecia. O que ele fez? Ele fez uma excursão com a baleia. Ele armou na Praça da Sé”.

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Nos Aflitos, 33, havia um hóspede, doutor Otoniel, que conseguiu se formar em Direito já na idade madura. Era baixo, franzino e amava o Direito. Uma noite, regressando à pensão, perto da Rua Tuiuti, viu um grupo tentando estuprar uma empregada doméstica. Doutor Otoniel interferiu, foi barbaramente espancado, mas a mulher conseguiu fugir. Dia seguinte, um olho todo roxo e cheio de outros hematomas, Doutor Otoniel foi para mim um exemplo de coragem para enfrentar uma covardia e impedir um crime.

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Um vendedor pracista, meu amigo, era casado e tinha uma namorada. Na década de 60 não havia motel em Salvador e nesses hoteizinhos de encontro a moça se recusava a ir. Alguns chegavam a pedir a identidade ao casal e a namorada ficava muito preocupada, principalmente por causa do estado civil do namorado. Resultado: ele dizia à esposa que havia umas vendas em Feira de Santana que iam acabar tarde e por isso  ia dormir lá para voltar no dia seguinte, já que não gostava de dirigir à noite. Em Feira ele já tinha um hotelzinho conhecido, onde não precisava de identidade para entrar com a namorada, que ainda levava uma maletinha para fazer de conta que estava chegando de longa viagem.

Ele bebeu, transou e dormiu. Antes, morto de sono, tirou a dentadura e colocou num suporte de metal do pequeno abajur de cabeceira, que passou a noite toda ligado, dirigindo para a dentadura o calor daquela forte lâmpada. Ao acordar, viu a dentadura toda desgrenhada, parecia escancarar um sorriso diante da desgraça dele. “O que é que eu vou dizer em casa?” Acordou a namorada ligeiro e foi atrás de um protético urgente.