Ciência / Saúde

Pesquisas sobre a Cannabis avançam; Brasil enfrenta entraves legais

Pesquisas sobre o tema têm avançado em todo o mundo

Foto: Pixabay.com/Creative Commons
cannabis sativa
O uso da cannabis tem sido utilizado para tratar de diversas doenças

Embora seja uma planta de uso milenar e proscrita em vários países há bem pouco tempo, em termos históricos, a Cannabis está enredada na sua dupla condição de droga psicoativa, por conta da qual recebe vários nomes — sendo maconha o mais popular deles no Brasil — e planta com propriedades medicinais. Pesquisas sobre o tema têm avançado em todo o mundo, mas no Brasil ainda há entraves para a regulamentação.

A criminalização da maconha no Brasil data do início do século 19, mas foi na primeira metade do século 20 que aqui e em outros países se intensificou a repressão ao consumo da droga.

Essa atitude sistemática é atribuída pelos ativistas de seu uso a tentativas de controle sobre populações marginalizadas, como os negros, e a interesses agrícolas e industriais nos campos farmacêutico, têxtil e de celulose. Uma de suas variedades, o cânhamo, serve à fabricação de vários produtos: tecidos, papel e até suplementos alimentares.

A solução que alguns países vêm adotando para fugir a esse dilema é considerar as variedades da planta como insumo farmacêutico e industrial, distinguindo-as do caráter de entorpecentes que possam ter em outros usos. No caso do cânhamo, isso se torna mais fácil, uma vez que essa variedade costuma apresentar teores muito baixos de tetrahidrocanabinol (THC), o temido princípio que gera embriaguez.

Foi o que fez, por exemplo, o Estado de Israel, país no qual a planta passou a ser estudada com afinco a partir dos anos 60 do século passado, levando às primeiras descobertas em torno dos seus princípios ativos, ou canabinoides, entre os quais, o THC.

Em 2016, ao constatar aumento no uso medicinal de Cannabis, tanto em seu território, como ao redor do mundo, assim como progresso significativo na pesquisa científica da planta Cannabis e do sistema endocanabinoide presente no cérebro, as autoridades israelenses decidiram tratar as atividades médicas e pesquisas com a utilização da Cannabis por meio de uma política pública de saúde.

"Embora a Cannabis não seja registrada como medicamento, o Ministério da Saúde de Israel acredita que seus produtos podem ser benéficos no tratamento de certas condições médicas. Mesmo contendo substâncias definidas como estupefacientes, que requerem controle e regulamentação para garantir a saúde e a segurança do público, a Cannabis deve ser tratada, na medida do possível, da mesma forma que um medicamento ou medicamento registrado", explica o diretor da Agência Israelense para a Cannabis Medicinal (IMCA, na sigla em Inglês), Yuval Landschaft.

A criação da IMCA permitiu a Israel ter um foco muito claro para as complexas interações que surgem quando é preciso lidar com substâncias ilegais em certas práticas, mas que se mostram promissoras para a ciência e a medicina.

"O uso de Cannabis para fins médicos é um campo dinâmico e em desenvolvimento e a regulamentação de seu uso medicinal é um processo contínuo em muitos países", prossegue Landschaft.

Segundo ele, em qualquer programa relativo à utilização da Cannabis para fins médicos, o Estado de Israel está vinculado às disposições da Convenção Única Internacional sobre Drogas Narcóticas, de 1961, e à observância rigorosa das disposições do decreto e regulamentos da Lei das Drogas Perigosas de 1973. As questões de “legalização ou descriminalização” da Cannabis para uso pessoal não médico ficaram de fora da reforma e são de responsabilidade do parlamento israelense, conforme o diretor da IMCA.

 

 

 

O regulamento da Cannabis medicinal estabeleceu como um dos princípios a garantia da oferta de produtos padronizados, reproduzíveis em concentrações constantes e controladas de ingredientes farmacológicos ativos (IFAs), permitindo aos médicos prescrevê-los com segurança e ao paciente obtê-los nas farmácias.

Para tornar isso possível, o governo publicou a primeira edição da "cannacopeia israelense", que constitui a literatura regulatória sobre as atividades de Cannabis medicinal em Israel, incluindo os procedimentos de licenciamento (Israeli Medical Cannabis), os procedimentos de qualidade e segurança de Boas Práticas e um “livro verde” com o método clínico de fornecimento de tratamentos de Cannabis medicinal.

Desse modo, a IMCA passou a atuar simultaneamente em vários eixos para promover a reforma da atividade médica relacionada à Cannabis e “criar um mercado bem regulamentado para uso médico e em pesquisa”, nas palavras de Landschaft:

"O país já alcançou muitos objetivos e marcos no cumprimento desse propósito e é atualmente um dos principais países do mundo na esfera da Cannabis para fins médicos", afirmou o dirigente.

Em janeiro de 2017,  foi inaugurado o primeiro seminário de treinamento médico, durante o qual os profissionais receberam os conhecimentos científicos e clínicos básicos existentes e foram apresentados à metodologia para a prestação de cuidados ao lidarem com a Cannabis medicinal.

"O médico assistente deve determinar o tipo de produto apropriado e ajustar a potência, via de administração, quantidade mensal, dosagem diária e consumo", esclarece Landschaft.

Em 2020, já havia operações clínicas e industriais ativas e em grande escala, mais de 100 mil pacientes elegíveis e autorizados, médicos qualificados para prescrever e tratar com Cannabis medicinal, fazendas e unidades fabris relacionadas, organismos de certificação para boas práticas, laboratórios de controle de qualidade e sistemas de distribuição, além de farmácias registradas para dispensar medicamentos canábicos. Sem contar as centenas de pedidos de pesquisa aprovados em todos os níveis científicos.

Quanto ao campo da pesquisa, o Ministério da Saúde israelense entende que “falta conhecimento científico sobre o mecanismo de ação da Cannabis e seus constituintes no corpo humano e que há pouca medicina baseada em evidências no campo”. A razão, de acordo com a IMCA, é que “a pesquisa de Cannabis é proibida em muitos países ao redor do mundo devido ao seu status legal”.

"Eis porque o ministério é a favor da promoção da pesquisa e do avanço do conhecimento científico em todos os níveis, desde a ciência das plantas até os ensaios clínicos", observa Landschaft.

Para a psiquiatra Eliane Nunes, que prescreve compostos canábicos a seus pacientes em seu consultório em São Paulo, o Brasil está amarrado a uma visão “racialista” herdada da chamada “Lei do Pito de Pango”, código de posturas baixado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1830, que proibia o consumo e a comercialização de cigarros de maconha (pitos de pango), sob pena de cadeia para escravos e demais usuários e multa para os comerciantes.

Diretora da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (Sbec), Eliane colabora em programas educacionais de plantio e extração de óleo iniciados em companhia do Padre Ticão (1953-2021) e agora encampados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ticão chegou a ser ameaçado em 2019 por grupos de extremistas insatisfeitos com sua atuação a favor de grupos de oprimidos e feministas.

A diretora da Sbec diz que quase 200 anos depois de uma lei do tempo da escravidão, o país se mantém dentro de um modelo repressivo que, ao contrário de equacionar a questão das drogas, estimula o consumo ilegal, inclusive por jovens, manda para a cadeia acusados de pequenos delitos e vê o envolvimento de integrantes das forças de segurança no tráfico.

"A verdade é que nós somos uma narconação e não é por causa da Cannabis".

Ítalo Alencar, advogado Criminal e ativista pró-Cannabis no Ceará, diz que parte substancial dos problemas vividos pela sociedade, principalmente por quem precisa do composto é causado pela Lei de Drogas (11.343/2006), que faz quinze anos no dia 23 de agosto, mas nunca foi adequadamente regulamentada.

O Decreto 5.912/2006 prevê que as atividades de cultivo de plantas para fins de extração de substâncias com fins medicinais devem ser regulamentadas pelo Ministério da Saúde, o que não foi feito, segundo o advogado.

Tanto ele quanto Sheila Geriz, usuária de compostos de Cannabis e coordenadora da Liga Canábica da Paraíba e da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (Fact-Brasil), entendem o plantio e a extração de óleo da Cannabis como um “ato de desobediência civil” apoiado no direito constitucional à saúde.

Em comparação com o quadro brasileiro de descompasso entre realidade e legislação e muita incerteza jurídica, Alencar cita entre os países que vêm evoluindo em termos de legislação o Uruguai, a Colômbia, a Argentina, o México, o Canadá e os Estados Unidos (em quase todo o território) a África do Sul e a Espanha.

Os entraves à pesquisa e ao cultivo da Cannabis são duramente criticados pelo médico especialista em dor Gustavo Resende Trianni, de Belo Horizonte. Ele classifica como “grande” o grau de confiança nos estudos disponíveis, ainda que haja necessidade de se avançar nesse terreno.

"São estudos, na sua maior parte internacionais, robustos em termos de dados, com respostas muito coerentes. A resposta dos pacientes é fantástica e não há grandes efeitos colaterais. Uso para tratar epilepsia, dores crônicas, em associação com outros medicamentos, ansiedade e as chamadas síndromes demenciais (Alzheimer, por exemplo) e Parkinson. São muito interessantes também no caso dos pacientes idosos, que já tomam um grande número de remédios", testemunha ele.

Trianni é favorável a um aproveitamento amplo das plantas:

"Ainda bem que desfizeram esse mito do CBD santificado e do THC demonizado. Ambas as substâncias são muito boas. No Brasil, o Estado não está abraçando essa causa. Vivemos em uma sociedade conservadora, na qual os políticos temem a perda de votos se aprovarem algo pró-Cannabis".

O médico ressalva que, como em qualquer medicação, o profissional de saúde deve estar atento a reações e calibrar a dosagem ou mesmo suspendê-la diante de quadros específicos:

"Em geral, os tratamentos envolvem o uso contínuo dos remédios, mas eventualmente se pode reduzir as doses. As pessoas que melhoram da fibromialgia sentem menos dor e podem voltar a praticar exercícios, o que acaba melhorando as dores, podendo ocorrer a mudança da medicação. Os pacientes pedem para tirar menos os remédios à base de Cannabis e mais aqueles agressivos, que podem causar sonolência. Mas há também casos em que os produtos de Cannabis de espectro amplo, que contém outros canabinoides, além do CBD, podem gerar algum efeito psicotrópico que incomoda alguns pacientes, o que nos leva a trocar a medicação".

Eliane Nunes entende que dúvidas sobre os efeitos psicotrópicos só vão ser sanadas, tanto para a sociedade, quanto para a classe médica, quando as pesquisas forem ampliadas e difundidas. Segundo ela, muitos estudos mostram que a Cannabis não é necessariamente prejudicial ao aprendizado, mas isso não é verdade em qualquer tipo de uso, importando a intensidade e a frequência.

No caso dos adolescentes, motivo de grande preocupação geralmente relacionada ao temor de psicoses, a psiquiatra diz que até o amadurecimento, os seres humanos experimentam uma profusão de neurônios, que precisam de “poda”.

"Se você usa a Cannabis na época da poda, pode interferir, sim [na atividade mental]. Mas para tirar a Cannabis dos adolescentes, temos que regulamentar, porque o ser humano sempre vai querer usar drogas. Não pode usar a ciência para proibir. É preciso discutir a cadeia de canabinoides. Na falta de regulamentação, quem ganha é o tráfico. Veja que na favela o Estado não chega. Agora, o argumento de que o Brasil não daria conta, de que não é organizado, não vale. Nós somos desorganizados para tudo. Se for por aí, teremos que fechar o Brasil".

Ela argumenta ainda que há receptores cerebrais semelhantes aos canabinoides no cérebro que podem se beneficiar bastante da Cannabis.