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Rotsenaidil era o nome de um dos hóspedes de minha mãe Cleonice, dona da pensão da Avenida Sete de Setembro, 239, em Salvador. Os pais dele, Lídia e Nestor, resolveram registrar o filho com os próprios nomes ao contrário.
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Pensão tinha muita coisa pelo avesso. Era só virar o lençol que saltava pulga pra todo lado. E você só conseguia segurar uma, para amassar bem amassadinha até ela ficar zonza e depois matar na unha do polegar pressionada pelo outro polegar (dedo conhecido como “mata-piolho”). As pensões eram cheias de pulgas, que nos tiravam o sono silenciosamente, diferente do zuim-zuim da muriçocas.
Alguns hóspedes matavam as pulgas nas paredes do quarto, deixando aquelas marcas de sangue. É terrível conseguir dormir quando há pulgas. Tinha um colega de quarto que, quando a coisa apertava, ele praticamente cobria todo o lençol com Neocid, uma latinha de inseticida em pó. Imagine o cheiro. Terrível também era descobrir que tinha uma pulga na cueca a 1 hora da tarde, na aula de Física, no Colégio Central, e você não podia enfiar a mão na calça porque Esmeralda estava do lado.
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Mas pior é ter que enfrentar um rato. Aconteceu comigo numa pensão que ficava na Rua Desembargador Castelo Branco, por feliz coincidência uma entrada de quem desce a Ladeira dos Aflitos, onde passei boa parte da minha infância. Agora estudava pro vestibular e estava no primeiro emprego: Banco da Província do Rio Grande do Sul, onde tínhamos que atender ao telefone assim: “Província, boa tarde”.
Voltando ao rato. Nessa pensão, que ficava sobre a Avenida Contorno, eu morava no sótão cuja janela dava para a Baía de Todos os Santos. Belíssimo, só via o telhado e o mar. Usava o banheiro que ficava no fundo da casa. Uma noite, estava a cagar, bermuda arriada nos pés, quando entra uma ratazana de quase um quilo. Felizmente, tinha uma vassoura no banheiro. Em vez de fugir, o rato partiu pra cima de mim, que tinha de proteger o pinto e matar o rato. Cada cacetada que eu acertava dava um grito de “toma, filho da puta”. E o rato ferido avançava sobre mim, teve uma hora que ele saltou na minha direção. Até que numa dessas cacetadas acertei o vaso sanitário, partindo-o ao meio. Finda a batalha, rato morto e pinto salvo, a dona da pensão veio correndo: “Francisco, o que está acontecendo?” No dia seguinte, ela queria que eu pagasse pelo vaso. “Eu pago, mas hoje mesmo vou procurar a Saúde Pública”. Cobrança retirada.
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Numa pensão da Saúde havia um hóspede forte que, quando chegava o almoço - arroz “unidos venceremos” (todo grudado) e o feijão ralo já servido no prato - ele erguia em riste o garfo e a faca e gritava, batendo os cabos na mesa: “Cadê o óculos de mergulhar e o arpão?” “Pra quê?” “Pra ver se eu consigo pegar um caroço de feijão”. Num instante, vinha uma xícara de feijão, sem caldo, trazida lentamente por Dona Keké, a dona da pensão.
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Tive outro colega de pensão, Márcio, um mineiro bom poeta, que um dia chegou da rua e me disse: “Chico, vi uma mulher que não andava, ela não andava, concedia passos à humanidade”. Depois, lembrei que tem umas que pisam no mundo.
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Outro colega, acho que se chamava Eliseu, queria aumento da mesada e o pai sempre negando. Ele foi a um fotógrafo “lambe-lambe” no Terreiro de Jesus, tirou uma foto em pé com os dois bolsos da calça espichados para fora, e mandou para o pai: “Essa é a situação do seu filho em Salvador”. O velho respondeu: “Tem dinheiro sobrando, deu até pra tirar retrato. Mesada sem aumento”. Tinha um estudante numa pensão que conseguia emprestar a própria mesada cobrando juros extorsivos. Também ele não comprava nem um palito e vivia a pedir merenda aos colegas. Deve ter virado diretor de banco.
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Na pensão dos Barris, quando a fome apertava à noite, a gente fritava uns dez ovos com quase um quilo de farinha e dividia com todo mundo. Quem achasse um pedacinho de ovo naquela farinhada era premiado. Dividir era a regra em qualquer pensão. Quem recebesse merenda do interior (carne do sol, goiabada e companhia) e não dividisse estava sujeito a um assalto. Teve um que trancou as merendas no guarda-roupa e passou um cadeado. Arrombaram o cadeado e comeram tudo.
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Uma vez, estava a estudar por volta de meia-noite quando ouvi a passeata: “Queremos comida, queremos comida”. Entraram no meu quarto, cada um com um prato e um garfo fazendo barulho, revistaram tudo e acharam meio quilo de requeijão. Comeram, e eu me incorporei ao fim da fila que prosseguiu as buscas em outros quartos: “Queremos comida”.