Gina Marocci

Como Salvador colonial se livrava do lixo e o que fazia com o esgoto


Salvador em 1870 - Foto: Bia Corrêa do Lago

De acordo com os atuais livros e manuais de saneamento, o lixo, produto das nossas atividades diárias, é chamado de resíduo sólido e necessita de um serviço de coleta. Tanto a coleta dos resíduos sólidos urbanos como a drenagem da água de chuva são responsabilidade do governo municipal. Entretanto, nem sempre foi assim, pois esses serviços começaram a ser estruturados em meados do século XIX. Antes disso, as câmaras municipais obrigavam os moradores a construir pontes, abrir e manter limpos e livres os caminhos e as estradas.

Já a drenagem da água pluvial exigia um sistema mais complexo, subterrâneo, abaixo do calçamento do leito das ruas, uma obra de infraestrutura que demora a chegar nas cidades e vilas coloniais no Brasil.

Então, o que fazer com o lixo e as águas sujas de cada dia? Jogar pelas ruas, encostas, terrenos baldios, rios, lagoas e praias. Por isso, ao falarmos desse assunto temos de compreender, também, como eram tratadas as ruas da cidade.

Em Salvador, como sabemos, muitas determinações da vereança se transformaram em posturas e em relação aos caminhos e estradas, o texto da ata de 27 de novembro de 1706, transformou-se em postura, que ordenava “a todas as pessoas que tiverem roças nos caminhos de Nossa Senhora da Graça, Barra de Santo Antônio e estradas públicas do Rio Vermelho, Nossa Senhora de Brotas, Penha, Itapoã, Tanque dos Padres, Itapagipe e mais termos desta cidade, tenham as testadas que confinarem com os caminhos e estradas públicos, limpos os ramos das árvores que estejam juntos aos ditos caminhos ou estradas. Terão cuidado de as cortar de sorte que não impeçam ao povo o passar a pé ou a cavalo e possa o sol enxugar as lamas.”

Nesse texto vemos que no início do século XVIII havia ocupação fora da área central da cidade, em lugares distantes como os mencionados, mas que os caminhos de acesso a eles não tinham calçamento nem cuidados a não ser aqueles realizados por particulares.

O calçamento das ruas, quando não era realizado por particulares, ficava sempre à mercê dos parcos recursos municipais.

Em 1703, o procurador do Conselho, notificado de que as obras de conserto e ampliação da cadeia, calçadas da cidade e reparos na casa do Senado, autorizadas pela Câmara, estavam inacabadas, fizera requerimento à vereança solicitando o término das obras e o pagamento dos arrematantes.

Mas a resposta da Câmara fora a mesma de sempre: faltavam verbas. Em 1736, a Câmara suspende o pagamento da arrematação do conserto de calçadas na cidade “por estarem as ruas cheias de buraco, e os que foram tapados, o foram com pedra muito mole.” Submetida ao seu pequeno orçamento, a Câmara ainda tinha prejuízo com serviços mal executados.

Em 1741, a Câmara arremata as obras da calçada da área próxima à igreja da Conceição.

A Câmara determinava que se observassem as posturas que tratavam da limpeza das ruas, principalmente as que cuidavam do horário de retirada do lixo das casas. Estipulava-se que deveria ser retirado o lixo das casas de dia e não pela noite, sem, contudo, jogá-lo no mar, no entanto, encontrava-se dificuldade em definir um local para colocação do lixo da cidade que, por descaso, ia sendo jogado pelas ruas e encostas.

Com o objetivo de melhorar o aspecto higiênico das ruas, determinara a Câmara, por meio de postura de 1742, a proibição de se criar porcos dentro da cidade, mais precisamente no trecho do forte de São Pedro até o fortim de Água de Meninos.

Era proibido criar porcos tanto dentro de casa como nas ruas, sendo que a pessoa que encontrasse qualquer animal pela rua, poderia matá-lo, ficando obrigada a dar metade da carne à Santa Casa da Misericórdia.

Nessa preocupação da municipalidade em proibir animais num trecho reconhecidamente consolidado no século XVIII, percebe-se a intenção de separar o urbano do rural, demarcando-se, assim, diferentes modos de vida.

Analisa-se, então, que já se percebia uma faixa suburbana contornando todo o trecho indicado na postura. Contudo, em 1784, o procurador do Senado solicita a nomeação de almotacé para cuidar do asseio da cidade que se achava repleta de porcos e outros animais pelas ruas, mesmo havendo uma antiga postura que proibia essa prática.

As atas da Câmara apresentam ao longo do século XVIII, as diversas obras de calçamento e reparo de calçadas já existentes, esforço exclusivo da Câmara e, ao que tudo indica, com pouco sucesso, principalmente pela dificuldade de encontrar quem se interessasse em arrematar os serviços, como denuncia a ata de 7 de maio de 1783, na qual o procurador do Senado propõe que seja alterada a forma de pagamento dos serviços das calçadas da cidade, deixando-se de fazer arrematações para realizar o jornal (pagamento por dia de trabalho), por que não havia aparecido nenhum interessado pela obra.

Talvez o desinteresse seja fruto da falta de pagamento dessas arrematações, fato que não deveria ser tão incomum, já que a Câmara vivia em débito com os impostos reais.

O governo da capitania também atuava em prol da cidade. Em 1789, D. Rodrigo José de Menezes utilizou o lixo da cidade como entulho, juntamente com terra, areia e pedras dos lastros de navios, para o novo cais construído pelo Senado. Porém, a situação do lixo na cidade era grave por causa da apropriação indevida de terras públicas.

A melhoria das condições sanitárias da cidade ocorreu vagarosamente ao longo do século XIX e teve como impulso a chegada da família real ao Brasil, em 1808.

A abertura dos portos, em 28 de janeiro do mesmo ano, aqui em Salvador, primeira ação do príncipe regente D. João no Brasil, também influenciou positivamente a execução de obras e organização de serviços para o benefício das cidades brasileiras.

A presença da corte portuguesa, bem como a chegada de viajantes estrangeiros vindos de grandes cidades europeias, principalmente os ingleses, trouxeram novos costumes e produziram críticas severas à ausência de infraestrutura urbana e de medidas no campo da medicina e da saúde pública.

Ainda em 1808, a Carta Régia de 28 de fevereiro criou dois cursos de cirurgia e anatomia nos hospitais militares de Salvador e Rio de Janeiro, e em 1809, o Príncipe Regente criou a Provedoria-Mor da Saúde, com competências de inspecionar as embarcações, os matadouros, açougues públicos e locais que vendiam alimentos, promover o saneamento das cidades e fiscalizar o exercício da medicina.

Até a primeira metade do século XIX a cidade não havia recebido relevantes ações para melhoria das suas condições sanitárias.

A partir da instalação da Companhia do Queimado, na segunda metade do mesmo século, e com as campanhas de saúde pública promovidas pela Escola de Medicina, para combater a febre amarela e a cólera, ocorreu a canalização do Rio das Tripas, que recebia boa parte dos esgotos do Distrito da Sé, entre a Barroquinha - antiga Hortas -, e a Sete Portas, e esse percurso tornou-se uma via pavimentada por onde passaram linhas de bonde.

A intervenção sistemática dos médicos, que recomendavam ações que promovessem melhorias na distribuição e no tratamento da água, da condução dos esgotos e da recolha sistemática do lixo foram fundamentais para o desenvolvimento de serviços públicos de saneamento básico.

Para saber mais

SAMPAIO, C. N. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.

SOUZA, C. M.C. de. A constituição de uma rede de assistência à saúde na Bahia, Brasil, voltada para o combate das epidemias. Dynamics, v. 31, n. 1, Granada, 2011.