Gina Marocci

Para que serviam as praças de Salvador na época da Colônia

O que se fazia na Praça do Palácio, hoje Praça Municipal, no Terreiro de Jesus e na Praça da Piedade

O mapa, de 1631, mostra as primeiras ruas de Salvador

Inicio meu texto fazendo-me uma pergunta: como os soteropolitanos utilizavam as ruas e praças da cidade no período colonial?

A princípio esta pergunta pode parecer de fácil resposta, mas não é tão simples assim. Em primeiro lugar, uma cidade colonial era um lugar de vigilância e de punição, como fala Michel Foucault, da afirmação do poder do colonizador sobre o colonizado. Desse modo, as atividades nos espaços públicos abertos, como ruas e praças, eram definidas por meio de posturas (leis municipais da Câmara) e determinações do governador da capitania.

Nosso percurso temporal irá até a década de 1850, período em que houve a implantação do primeiro sistema de abastecimento público de água para Salvador.

Então, vamos lá entender a apropriação do espaço público pela população de Salvador ao analisar três praças importantes: a Praça do Palácio, hoje Praça Municipal, o Terreiro de Jesus e a Praça da Piedade.

Comecemos por conceber que todas as manifestações nesses espaços estavam relacionadas à religiosidade católica e às datas festivas ligadas ao poder local ou ao Império Português. Portanto, as manifestações religiosas, que todos deveriam participar, obrigatoriamente, eram as datas festivas como a Semana Santa, Corpus Christi e o Natal, e os autos de fé, procissões mais raras no Brasil, determinadas pela Santa Inquisição, que de santa nunca teve nada!

Todas essas manifestações eram organizadas como procissões, com a presença dos estandartes de confrarias e irmandades, que seguiam pelas ruas principais até uma dessas praças, onde se encerravam as cerimônias.

Já as manifestações convocadas pelo poder local se referiam às datas de aniversários e casamentos reais e de importantes figuras, à leitura de novas determinações legais e às execuções em praça pública.

A Praça do Palácio sempre foi a praça municipal, ou seja, onde ocorriam os proclamas, para os quais todos deveriam atentar ao toque do sino da Casa de Câmara e Cadeia.

Nela também ficou por um tempo o pelourinho, para a execução das punições contra malfeitores e escravos.

Havia um guindaste, de propriedade da Câmara, fixado na encosta, que transportava as mercadorias do porto até a praça e, dali os escravos as carregavam até o edifício.

O Terreiro de Jesus, lugar da fixação da Companhia de Jesus desde o século XVII, também era um grande espaço de terra batida, sem jardins nem calçamento.

Os jesuítas proporcionavam folguedos para marcar os dias festivos, como autos de Natal e da Paixão, além de touradas e cavalhadas. Nos autos, verdadeiras peças de teatro, as pessoas vinham de suas casas com cadeirinhas ou bancos e a praça se tornava um teatro a céu aberto.

A Praça da Piedade sempre foi fora dos muros da cidade, na expansão promovida pelo Mosteiro de São Bento e pelo Convento dos Capuchinhos.

Até o século XVIII era um largo onde ocorriam as movimentações das tropas de proteção à cidade.

Em dias de festa, ela abrigava as cadeirinhas de arruar, cavalos e carruagens e possibilitava o encontro entre famílias e grupos de escravos.

praça da Piedade, século 18
Praça da Piedade, séc. XVIII

A Piedade também abrigava as cerimônias de enforcamento, como dos insurgentes da Conjuração Baiana de 1798.

enforcamento
Enforcamento dos participantes da Conjuração Baiana, na Praça da Piedade

Na primeira metade do século XIX, com a construção do sistema de abastecimento de água do Queimado, foram implantados chafarizes nas praças de Salvador para que a população tivesse acesso à água tratada. Das três praças em análise, duas foram ornadas com belíssimos chafarizes.

Em 1856, o Terreiro de Jesus recebeu o chafariz que conhecemos, mas ainda não se estruturava como uma praça, com bancos e jardins, isto só foi acontecer para o final do século XIX.

Terreiro de Jesus, século XIX
Gravura do Terreiro de Jesus com o chafariz, século XIX

Em 1858, foi implantado na Praça da Piedade um belo chafariz, que agrupava negros e formava um “canto” da nação nagô, lugar onde as escravas ganhadeiras vendiam alimentos, os escravos de ganho ofereciam os serviços dos seus ofícios e, até mesmo os libertos sempre da mesma nação.

Esse chafariz está, hoje, no Largo dos Aflitos.

chafariz antigo em Salvador
Chafariz da Praça da Piedade, século XIX

Mesmo com a instalação dos chafarizes, as praças eram pouco visitadas, pois demorou um pouco para a população se impregnar dos costumes cosmopolitas dos europeus, mas essa história vai render uma coluna inteira, então fica para a próxima semana.

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Para saber mais

SAMPAIO, C. N. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Arquitetura. Centro de Estudos de Arquitetura na Bahia. Fundação Gregório de Mattos. Evolução física de Salvador. Edição especial. Salvador: Pallotti, 1998.