A hora da despedida física chegou. O silêncio preenche Matilde Matos, mas as suas palavras ditas permanecerão como aquelas que escreveram a história das artes plásticas da Bahia.
O que me chama atenção e ‘salta os olhos’ em Matilde Matos é a sua capacidade de transgressão ao tentar realizar o ‘ainda-não-ousado’, e consequentemente a sua contribuição em provocar o universo feminino enquanto capacidade de produção intelectual, ativa e transformadora do meio em que vive.
Na década de 1970 Matilde apontou a direção do olhar artístico para o respeito às nossas tradições nordestinas, a nossa cultura material e imaterial, a igualdade entre as raças e a valorização do feminino através do próprio ato de fazer tudo o que queria, sem se ater aos limites impostos pela sociedade.
Sem a vaidade do peso do conhecimento, Matilde tinha como foco principal os artistas plásticos que estavam iniciando a carreira, sem nunca esquecer os veteranos.
Descobrir os novos era pauta diária.
Adorava visitar os ateliês e ver de perto a obra tomando forma pelas mãos do seu criador, e a partir daí tecer seus textos críticos baseados na vivência junto ao artista. "Ela escrevia o que via e o que sentia", diz o artista plástico Leonel Mattos.
Suas palavras que serviram de incentivo para muitos, também foram amargas para alguns artistas. Ela mesmo conta que uma certa vez João Falcão, dono do jornal que trabalhava, perguntou sobre um determinado artista que ficou ofendido com o seu texto e ela afirmou: "não posso mudar o que escrevi. Ele não é bom". E João acatou.
Matilde “sempre fez o que quis. Independente da opinião de quem quer que seja”, afirma Edison da Luz, artista plástico.
Destemida e dona da Página Quente, coluna diária do Jornal da Bahia, ela seguia bravamente rumo a tudo que acreditava. Mesmo na época da ditadura Matilde falava o que pensava.
Ela acreditava na necessidade da re-educação do olhar e do fazer arte na Bahia/Brasil que estava voltado para os estilos produzidos no estrangeiro.
Junto com um grupo, liderado por Edison da Luz, Matilde, em seus textos, sugere um mergulho na própria raiz: uma arte genuinamente brasileira, comprometida com a nossa verdade cultural. Nasce o Etsedron.
ETSEDRON
Etsedron é Nordeste do fim para o princípio. Desnudo, revirado, visceral.
Com o final da ditadura a luz da brasilidade se ascendeu, e para Matilde urgia a necessidade de uma arte nova, sem a aparência estrangeira que determinava os estilos da época.
O movimento do fazer artístico já era visível nas gravuras e pinturas de Edison da Luz, que de forma consciente já caminhava para uma tendência que imprimisse a identidade brasileira, que até então não era tão visível nas artes plásticas, visto que a semana de 22 trazia uma forte influência das terras de além-mar.
A vontade de ambos os uniu em uma única direção: criar um movimento onde a essência da nova arte viesse da raiz. Da vivência de cada um com a cultura local.
Por serem do Nordeste, ela de Caicó, Rio Grande do Norte, e ele da Bahia, este território é o centro inicial da ação, daí o nome. Depois veio, de forma mais branda, a experiência vivida no Norte.
Com o propósito firme Edison começa a pesquisar materiais. Ele, que já fazia escultura, descobriu no cipó o elemento ideal para dar forma a sua essência.
Depois de Edison encontrar no cipó o elemento principal da criação, Matilde elabora teoricamente o projeto com base na antropologia, sociologia e etnografia, identificando a origem da arte.
Com a direção encontrada era preciso fazer ecoar o resultado do trabalho. O caminho era São Paulo. A Bienal.
E lá construíram uma casa de taipa com todos os utensílios e hábitos do sertanejo entremeando com as esculturas de cipó. No chão a terra espalhada. Dialogando com a obra e fazendo parte da mesma, foi realizada uma performance com vários artistas baianos que participaram do intento.
O encontro do visceral com a intelectualidade foi a base do Etsedron, o único movimento baiano de artes plásticas a atravessar a fronteira estadual e conquistar o espaço consagrado às artes plásticas no Brasil: a Bienal.
E o mundo conheceu a crítica de arte que chamava a atenção por identificar na sua origem a possibilidade de uma arte nova, uma arte que exercesse o caráter essencial de exprimir a própria realidade histórica e cultural de uma terra multicor.
Apesar do Etsedron ter sido premiado na Bienal e alcançar visibilidade no mundo, o projeto cuja essência era/é a cultura negada, nunca foi reconhecido pela Bahia, até hoje.
Na busca de realizar o que acreditava, Matilde opera a superação de si mesmo na ruptura com o universo circundante.
Foram tantas frentes que dialogavam e se pronunciavam além e através da própria arte que podemos dizer que Matilde Matos revelou a arte da Bahia, abriu caminhos para a mulher nas diversas frentes de ocupação e trabalho e enfrentou a luta contra o racismo.
Enquanto jornalista foi única mulher a cobrir a inauguração de Brasília; enquanto empresária e produtora foi a fundadora da Escola EBEC e da Ebec Galeria de Arte - aberta aos novos e velhos artistas, apoiando a todos que passavam pelo crivo do seu olhar crítico; e enquanto ser humano foi uma das primeiras mulheres ‘brancas’ a assumir o namoro publicamente com um afrodescendente, inclusive tendo que inventar meios de burlar a sociedade racista para que eles pudessem se hospedar na rede hoteleira do país.
Matilde era inexplicável. Uma mulher que agia espontaneamente e versava em várias línguas, desde a popular até a mais refinada, e sem se preocupar em querer ser, se tornou em uma das principais referências da história das artes plásticas do país.
Em 2014, aos 87 anos, Matilde me chamou e falou: “quero uma página em algum jornal da cidade. Quero voltar a escrever. Me diga quem são os que estão à frente dos jornais para que eu possa procurá-los”.
Esta é Matilde! Três vezes Salve!
No vídeo
Matilde Matos: a arte do silêncio