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"Que horas acaba a novela, filho?" Ninguém entendeu porquê aquela senhora serena, tão boa da cabeça a vida toda: me perguntou aquilo, no velório, no dia do enterro do próprio marido.
Voltando um pouco... Eu estava sem visitar seu marido (meu avô) há algum tempo. Mas naquela semana tive muita vontade de ir. Não sei o motivo. "Qualquer motivo serve pra quem quer motivo", não é? Então eu fui sem saber o motivo, sem motivo algum mesmo. E quando entrei no quarto, ele estava deitado. 96 anos. Mas quando ele me viu, levantou-se. E sentou-se na beira da cama. A gente só se olhou. As janelas do quarto estavam abertas, seus olhos brilhavam lindamente. Ele sorriu pra mim. Foi só isso. Senti vontade de chorar, mas não chorei ali não. Depois de uma semana: estava morto. Foi a nossa despedida.
Meu vô sabia poesias, poemas inteiros de cabeça, era muito culto. Tudo que eu perguntava pra ele, ele sabia. Um homem respeitado e honrado e que trabalhou muito, deu duro para criar sete filhos.
Ele tinha uma serenidade assustadora. E não deixava de fazer o que gostava não. Bebeu sua cerveja... Comeu seu torresmo, fumou seu cigarro até o final. Acho que ele fez um pacto com Deus, com a natureza, sei lá, não era só compleição física.
Era um homem abençoado. Amado. Admirado. Durante muitos anos era na casa dele que toda a minha familia (por parte de pai) se reunia.
Quando eu era bem criança, eu pensava que o vô tinha nascido velho. E que tinha todas as respostas. E que nunca iria morrer.
O vô sabia fazer paçoca e fazia um monte de paçoca; para mais de 40 cabeças; filhos, netos, bisnetos. Tudo feito à mão. A gente comia com banana, no quintal. Era muito boa, cheirosa pra caramba!
Ele nasceu em 1904 e morreu no ano 2000. Ele viu muita coisa no mundo. Do surgimento do avião à bomba atômica, internet, celular, guerras mundiais, seus filhos, seu amor, amigos... Ele me disse que no ano 2000 estava bom. Seu corpo estava cansado. Ele conseguiu. Lúcido até o último segundo em que esteve por aqui.
Morreu nos braços do meu pai. Tinha pedido pro meu pai ajudá-lo a ir ao banheiro. O pai me disse que ele falou: "Filho, tô cansado. Tô muito cansado". E, no caminho, ele soltou um leve suspiro. O pai me disse que foi só uma expiração suave, breve. O pai que é médico, que também já viu bastante coisa nessa vida, me disse que ficou sem rumo na hora. Mas logo se recompôs. E me disse que só abraçou o vô e que falou baixinho: "Descanse em paz, Pai".
Mas a vó me perguntava: "Que horas acaba a novela, filho?"
Aí eu saquei que ela não quis mais viver sem ele. Foi só isso. Um caso a ser estudado? Mais um nome de doença a ser catalogado? Tipo um Alzheimer diferenciado? Acho que não. Deixa isso pra lá. Ela continuou linda, viva, com aquele sorriso lindo. Ela tinha um sorriso capaz de desarmar o sujeito mais sisudo da face da terra. A pele mais linda que eu já vi. Minha vó.
No dia de sua morte, há alguns anos, eu escrevi um texto pra ela, mas eu perdi. Eu tinha escrito à mão. Transferi para um computador que deu pau no HD.
E eu comecei dizendo algo do tipo: "A novela acabou agora, vó".
A gente ainda tem mais uns capítulos pra fazer por essas bandas aqui. E se eu conseguir fazer com 10% da dignidade que a senhora e o vô fizeram, morro com um pouco de paz no coração.