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"Papai, não joga o passarinho no lixo, não. Ele é criança". É um passarinho morto, caído no quintal. Tal afirmação me parte ao meio. Estava mergulhado num livro sobre escravidão, do Laurentino Gomes, um rastro de destruição. Tubarões devorando corpos negros antes mesmo de afundarem no mar, traição, ganância, príncipes e princesas sendo vendidos nas feiras como animais, valas abertas, mães chorando. Minha filha segura minha mão com força e pede compaixão ao pássaro morto. "Papai, não joga o passarinho no lixo, não. Ele é criança".
Alguns de nós são doentios, outros assassinos, narcisos, vendedores de si mesmos, mórbidos. Uns são brilhantes e outros, ainda, coloridos na alma. Mas às vezes encontramos alguém que é magnífico, e quando encontramos, não há nada que se assemelhe. Eles existem sim. "Papai, a geladeira do vovô quebrou. A gente tem duas. Dá uma pra ele, papai" - diz minha filha de 4 anos. É, eles são pequenos, desdentados, generosos e ainda não foram contaminados pelo nosso mundo de obras superfaturadas, trabalho escravo, aparências, prepotência, mentiras, guerras, cobiça, competições estúpidas, genocídio, egoísmo, individualismo, arrogância, cinismo.
A epopeia contou doze mil versos sobre uma batalha. Uma única batalha. O inferno do bramanismo, o mais terrível dos dezessete abismos, que o Veda chama de Floresta das Espadas: é monstruoso!
Pelo "raciocínio" do ser humano adulto: podemos massacrar tudo que anda, "rasteja", nada, voa, vive.
A traição, que é considerada o maior pecado no livro "A Divina Comédia" de Dante, recebe a punição máxima no local mais profundo do inferno. A justiça divina retratada no livro é definitiva, o que torna o inferno dantesco uma espécie de "caos impiedosamente ordenado". A mesma traição que leio no livro de Laurentino, mas sem punição alguma, sem Deus. O mesmo horror!
Talvez Deus tenha morrido, ou nunca existido, diria Dostoiévski na boca de Ivan, no livro "Os irmãos Karamazov". Porém, Ivan não pôde provar nada além de sua amargura, sua tristeza e sua inteligência orgulhosa - demasiadamente orgulhosa.
Eu vejo o milagre. Eu vejo Deus! O milagre pronuncia as palavras de maneira errada e dá dignidade a um pássaro morto. Quer dividir o que tem. Não tem maldade. Fala com os olhos cheios de lágrimas: "Papai, não joga o passarinho no lixo, não. Ele é criança".
Fui testemunha do milagre. Não é o paraplégico levantando da cadeira de rodas para uma plateia; é a generosidade viva, e ela está na minha frente, sozinha. E olha nos meus olhos. Já fui assim um dia. O que aconteceu com a gente, meu irmão, minha irmã?